A “veinha” do Seu Mané

Aquela relação que sobrepôs-se aos anos tornou-se mais que amizade.

Tudo começou numa manhã de primavera. Fazia calor. Um calorzinho gostoso. Flores coloriam o entorno.

Manoel contava com menos de vinte anos. Antônia um cadinho menos que isso.

Era um casalzinho adorável. Casaram-se ainda virginais. Nunca haviam experimentado o sexo. Naquela primeira noite juntos foi em verdade a primeira. Das muitas noites quentes que contabilizaram a vida inteira. Naquela cama apertada. Onde apenas cabia um. Mas, o que contava era a proximidade dos dois. Que dormiam abraçadinhos juntando os corpos ainda sequiosos de fazer amor.

Ainda me lembro do seu casamento. Foi uma festa linda. Num jardim cheio de flores. Era a primavera que coloriu aquele amor que persiste de uma forma diferente. Mas ainda deve ser chamado de amor.

Quiseram os anos que Seu Manoel de dona Antônia passaram a vida toda apenas em companhia deles mesmos. Daquele consórcio não vieram filhos. Não por não desejarem. Mas um deles era infértil. Procuraram a ajuda de um médico. Que depois de um exame acurado deu a notícia ingrata que dona Antônia não poderia ter filhos.

No entanto esta casualidade não mudou em nada a relação amistosa que sentiam um pelo outro. E ela continuava imune à rusgas, a malquerenças, a qualquer tipo de conflitos.

Eis que sobreveio a velhice. Ainda plenos de saúde e disposição dava gosto entrar porta adentro daquela casinha simples.

Eram dois quartos apenas. Uma cozinha espaçosa. No centro um enorme fogão a lenha compunha o cenário quentinho nas noites de inverno. Um banheiro no meio dos quartos dava a impressão de nunca ter sido usado. Tal o capricho que dona Antônia o mantinha, cheirando a limpeza perfumada.

Se fosse passar um metro naquelas acomodações singelas não daria mais de cinquenta metros quadrados. Pra que mais? Se o amor daqueles dois era tão grande que não se podia medir em distância. Era um amor desmedido. Imensurável.

Aos mais de setenta anos, completos naquele dois mil e dezoito, comemorado com uma festa na qual compareceram os amigos mais chegados, contava-se nos dedos das duas mãos mais de dez, dona Antônia esmerou-se no bolo lindo enfeitado com setenta velinhas.  Seu eterno namorado, ainda saudável, amante das horas certas e incertas, a ela lançava olhares de puro enlevo. Ao que ela retribuía da mesma maneira. Com uma piscadela de olhos. Naqueles olhos claros carregados de ternura e amor verdadeiro.

Mas é chegada a hora da idade cavoucar-lhes as costas.

Seu Mané, como era conhecido nos arrabaldes, caiu enfermo.

Sua coluna torta rangeu ao peso dos anos. Por não poder sair da cama era dona Antônia que dedicava todo seu tempo e amor imenso aquele senhor alquebrado pelos anos.

Ela acordava antes do despertar do dia. Fazia um café com leite da preferência do marido. Um pãozinho de queijo perfumado saía da boca do forno. E tudo levava ao leito ainda quente do amado.

Antes de completar oitenta anos outras enfermidades apareceram. A urina não saía como dantes. O pobre Seu Mané passava a noite inteira tentando esvaziar a bexiga. Ali ficava um restinho. O já idoso ancião mal parava na cama. Com enormes dificuldades a esposa dedicada o levava ao banheiro. Até quando uma queda aconteceu.

O pobre Seu Mané fraturou a bacia. E passou o resto da vida entre dores e dissabores próprios da idade.

Sorte que dona Antônia ainda era capaz de cuidar do marido. A saúde felizmente a ela assoprava com seu sopro de vida.

Mas, com nem tudo que é bom dura pra sempre, um dia Dona Antônia um dia se viu doente.

Como não tinham quem cuidasse deles acabaram por ser internados numa casa de idosos. Asilo é um termo forte demais.

E ali passaram seus derradeiros dias. Nenhuma vivalma apareceu a fim de fazer-lhes uma visita.

Mas, com aquele amor que resiste ao tempo, quem são os anos para dizer o contrário, Seu Mané e dona Antônia passaram anos e anos naquele pequeno quarto da casa de idosos.

Acamados, sem poder juntar os abraços, soube, pela boca de terceiros, que na data de hoje, dezenove de junho, num dia de sol frio, antes de raiar o dia encontraram o casal morto. De mãos dadas. Abraçados deitados no chão frio. Com o mesmo sorriso nos lábios lívidos.

Até hoje esta história, a qual dei o nome de “a veinha do seu Mané” tem me inspirado sempre.

Todos passaremos pelo mesmo caminho.  Daí o valor que devemos dar as nossas “veinhas”. Esteios de nossas andanças aqui na terra.

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