Ainda não me sinto

No dia de ontem assisti, pela televisão, uma novidade no que diz respeito à idade.

Se não me claudica a memória, coisa que acontece aos velhos, foi na Itália o sucedido.

Naquele país tão lindo para ser considerado idoso o cidadão deve passar dos setenta e cinco, para poder desfrutar todas as benesses da aposentadoria.

A explicação salta aos olhos: cada vez mais a gente, devido aos avanços da medicina, as dietas mais elaboradas, aos cuidados que se tem com o corpo, o antes idoso retrocede no tempo, e consegue fazer coisas que não era capaz antes do tempo que conta agora.

Eu mesmo sou a explicação convincente das recentes descobertas alardeadas no dia de ontem.

Corro com mais disposição de dantes. Escrevo com mais sofreguidão. Penso com maior desenvoltura. Não me preocupo tanto com o futuro. Pois ele já chegou pra mim há muito tempo. As ambições já consegui me desvencilhar delas há anos. Já conquistei quase tudo que queria. Fortuna, dinheiro, fama, absolutamente não me fazem perder o sono. Netos já tenho dois. Logo vai nascer o terceiro. Quem sabe anos depois irá nascer uma meninazinha? Talvez seja este o único desejo de um avô babão.

Quantos anos mais viverei? Nunca perdi o sono por este motivo. Aliás o sono não me faz falta. A noite considero um desperdício de tempo para quem já viveu tanto.

De hoje a dois dias inaugurarei idade nova. Dos atuais sessenta e oito passarei a sessenta e nove. Quase setenta. Mas, contrariando as previsões do tempo, e como tem chovido ultimamente, olhando pra cima parece que vai cair mais chuva no deitar da tarde, não sinto a diferença entre um ano e outro. Nada de novo tem acontecido comigo. A calva continua sem evoluir. A visão parece ter melhorado. Enxergo agora, depois das operações de catarata em ambos os olhos, com a perfeição de um beija-flor em seu farfalhar de asas. Não careço de óculos, nem para leitura muito menos para escrever tanto. Meu coração bate no mesmo compasso. A respiração, durante as corridas pela vida afora, nem parece que meus pulmões possuem a idade que têm. A próstata vai bem, obrigado. Levanto durante a noite uma vezinha apenas para verter urina. Durmo o necessário para acordar bem disposto. Caso medisse a distância que caminho todos os dias seriam necessárias milhares de fitas métricas. Creio que daria a volta ao mundo nem sei quantas vezes.

Se ficasse aqui, enumerando os motivos por que não me sinto velho, a lista se estenderia além de não sei quantas linhas. Ainda não me sinto velho. Muito menos idoso. Embora use quase todas as prerrogativas dos anciãos longe estou da idade provecta.

Ando de ônibus sem pagar passagem. No supermercado desfruto da fila preferencial. No cinema pago meia entrada. Mas, um dia, quando esperava na fila do cinema, a garota dos bilhetes questionou o velho que disse ser. Foi preciso retirar minha carteira de identidade para que ela, a contragosto, acreditasse que eu havia passado dos sessenta e cinco. Um cadinho mais, eu disse. E comprovei.

Embora me sinta bem entre os velhos entre os meninos me acho.  Aprendi a usar o celular como eles. Uso os tais fones de ouvido sempre plugado ao Spotify.

Ao descer a rua, como no dia de hoje aconteceu, como os portões de um colégio se abrem, entro por eles. Pena que, uma vez lá dentro, não consigo retroceder nos anos. Bem que gostaria. Talvez.

Ainda não me considero idoso. Sobejamente aquele velho decrépito, meio surdo, que precisa de muletas para se locomover. Talvez, num futuro incerto assim estarei. Mas, sem me preocupar com o que vai acontecer continuo a fingir que a idade não me cavalga às costas, com seu peso morto.

Com também sei que um dia irei morrer. Quando? Como? Com que idade?

Caso um dia tiver de morrer, se isso deveras acontecer, que seja durante o sono. Sem ter ficado atado a um leito de morte. Sem consciência, em respiração assistida, com os olhos fincados naquele espaço vazio, agônico como certos amigos que eu mesmo vi morrer.

Confesso que não me sinto velho. Como aquele sapato que foi jogado no lixo, furado na sola, todo mordido de ratos.

Creio que tenho uma vida inteira pela frente. E que irei acompanhar o crescimento dos meus netos por muito tempo ainda. Eu acredito. Piamente na vontade de Deus.

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