Entre ela e minha família escolho a segunda

Difícil escolha esta. Ficar em casa, ver a geladeira vazia, ou sair às ruas em busca de trabalho.

De fato. Pura verdade.

Nesta pandemia, quando nos recomendam o isolamento, manter distância segura do próximo, deixar o próximo cada vez mais distante, torna-se missão quase impossível seguir as recomendações.

Assim aconteceu aquele obreiro senhor.

José Arimateia, um da Silva qualquer, que perambulam país afora, de uma hora pra outra se viu desempregado.

Bom operário, sempre pontual, aquela fabriqueta de fundo de quintal alegou dificuldades em manter as portas abertas.

As encomendas foram paulatinamente minguando. As contas se amontoando. As dívidas com os fornecedores foram à estratosfera. De repente, sem mais que num repente, o patrão deu aviso de dispensa a todos os funcionários. Não restou unzinho só para contar a triste história.

José começou a fazer bicos. Um faz tudo como a maioria do povo brasileiro.

Ele já foi pedreiro. Mestre encanador. Não fazia feio com uma broxa nas mãos. Já foi tintureiro num passado remoto. Quando deixou o seu Nordeste em busca de melhores oportunidades.

Ainda se arrepende de ter votado naquele sapo barbudo. Que se dizia pai dos pobres. Mas só tinha olhos para a própria ganância.

Zé, uma vez no olho da rua, amargurado, desiludido, foi pra casa a fim de dar a noticia aos familiares. Era a primeira vez que ficara desempregado. Mas sempre tem a primeira vez.

Nos primeiros tempos satisfez-se com o tal auxilio emergencial. Mas não era homem de se sujeitar a receber esmolas. Gostaria de voltar ao trabalho. Era gente obreira, estoico trabalhador acostumado a acordar cedo, enfrentar os rigores do clima, e voltar a casa depois de um dia intenso de trabalho, e ser recompensado com o sorriso da família.

Em casa nunca faltou nada. Viviam num bairro de periferia. Para chegar ao emprego carecia tomar mais de duas conduções. Tinha casa própria. Adquirida em suaves prestações financiada pela caixa.

Zé e dona Maria tinham três filhos.  Todos eles do sexo feminino. Eram crianças lindas. Estudiosas, bem educadas, exemplos a passar adiante aos nossos filhos.

Naquela manhã de quarta-feira, o mês de junho amanheceu com uma névoa densa a encobrir quase tudo, foi decretado lockdown por toda a cidade. O toque de recolher deveria ser levado a sério. Sob pena de multas pesadas. Todos deveriam ficar em casa. Como se fosse possível trazer comida pra casa naquela situação aflitiva.

Foi quando me encontrei com ele num cruzamento movimentado da cidade.

Zé trazia um cartaz com os seguintes dizeres: “não quero favores. Preciso de emprego.”

As ruas estavam vazias. Segundo orientação das autoridades. Fora decretado o fechamento de todos os estabelecimentos comerciais. Fora aqueles ditos essenciais.

Não tive como não parar ao lado daquela pessoa. Pra mim desconhecida. Até aquele momento. Fui atraído pelo inusitado daquele cartaz feito num pedaço de papelão.

Naquela hora, quase meio do dia, acabei por perguntar a razão de estar ali empunhando aquele pedido de socorro.

“Desculpe, meu amigo, você não deveria estar em casa? Conforme dita o decreto municipal? Não tem medo de ser multado? Ou conduzido à barra dos tribunais”

Aquele Zé, que bem poderia ser Manuel, me respondeu, sem abaixar o cartaz: “olha moço. Estou acostumado ao trabalho duro. Desde os sete anos estou na lida. Entre a pandemia e minha família, escolho a segunda. Prefiro enfrentar o risco de me contaminar a deixar minhas filhas com fome. Acredito que o trabalho dignifica o homem. Daí a minha insistência em persistir nesta procura insana. Apesar de saber o quão difícil é conseguir emprego neste país. Mas vale a pena tentar”.

Dali saí pensando no tal lockdown. Seria ele mesmo necessário?

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