É preciso coragem…

De fato. Não tem sido fácil viver nestes tempos conturbados.

Pela mídia só se enxerga violência, pobreza, mortes a cada dia, uma guerra que não tem fim, pessoas desempregadas vivendo à custa de migalhas, sem tetos dormindo ao relento, desalento, ressentimento, famílias enlutadas lastimando a perda de entes queridos, drogados amontoando-se nas grandes cidades, e gente vendendo drogas, nestas suas malfadadas drogas de vida.

Não tem sido fácil sobreviver nesta realidade em que nos encontramos. Tento não me informar de tanta coisa ruim que anda acontecendo. Mas, como ficar a salvo de tanto sofrimento? Se a cada passo a gente vê, pelas ruas, nestas madrugadas frias, gente dormindo parcialmente coberta por um cobertor surrado, pedintes esmolando a porta de restaurantes, crianças sem escolas, e a pobreza se alastrando como ervas daninhas num jardim descuidado.

Tem sido preciso ter coragem para enfrentar as vicissitudes da vida. Pra muitos ela sorri. Pra outros ela fecha os olhos.

É preciso coragem para acordar cedo, quando a temperatura e a escuridão são um convite a não sair da cama. E, sem precisar acordar tão cedo deixar o aconchego do lar, simplesmente para tentar desovar toda a inspiração que me cavouca por dentro, como se fosse uma tempestade prestes a desabar.

Hoje, nesta manhã cinzenta, cujo sol ainda não deixou seu leito celestial, como de hábito deixei meu apartamento antes das seis da manhã. Confesso que é preciso coragem para tomar esta atitude.

Aqui, no meu andar, de luzes acesas, uma mocinha simpática, a espera de uma consulta na sala contígua, me questionou: “o senhor acorda cedo. O seu colega ainda nem deu as caras”.

Mal sabia ela que sou escritor. E nesta hora madrugada é quando a inspiração nasce. E desce das minhas entranhas como uma cascata de águas cristalinas descendo a serra, depois de uma tempestade que na noite de ontem desabou.

A esta hora madrugada me lembrei de um amigo da roça, Seu Benedito, como eu um madrugão convencido e convicto.

Precisamente antes da cinco ele já se põe de pé. Lava o rosto envelhecido na água fria vinda da mina. Que nestes tempos de seca quase secou.

Calça uma botina surrada. Toma um cafezinho magro requentado na trempe do fogão a lenha. Deixa sua casinha tosca antes que o sol nasça.

Já era tarde quando ele chegou ao curral. Faltava, naquele quarta-feira, maio quase fechando os olhos, metade de suas vaquinhas magricelas.

Uma delas, a melhor do plantel, de mojo cheio, ameaçava parir. Onde ela estaria amoitada? Decerto num sarandi, escondidinha do bicho homem, o qual temia como lobisomem em lua cheia.

Seu Benedito, homem de coragem, que não levava desaforo pra casa, tinha o costume de não deixar para amanhã o que deveria fazer no dia de hoje.

E assim escorria a sua vidinha singela. Ele era feliz a sua maneira.

Antes das oito lá no alto aparecia o caminhão leiteiro. Não era preciso ouvir a buzina.  Era sempre a mesma hora.

Seu Benedito, um tanto aflito, não parava um instantezinho quieto. Até parecia que um carrapatinho chamado Micuim passeava pelas suas costas tostadas pelo sol da tarde.

Ele mesmo fazia o próprio almoço. Desde moço aprendeu a cozinhar. Foi sua saudosa mãezinha que o ensinou. Seu Benedito um dia se casou. Enviuvou-se antes de completar trintanos. Desde então aprendeu a viver só. Ele se bastava. Era esta a sua crença.

Quase não tinha tempo para um cochilo depois do almoço. Lá fora as vacas berravam de fome. Era hora de encher os cochos de silagem de milho e cana picada. As lidas diárias não o incomodavam.

Lá pelas bandas da tarde, antes que o sol se punha, lá ia ele para a segunda ordenha. O tanque de expansão quase cuspia as sobras pelas beiradas. Era com a renda do leite que se mantinha.

Antes das seis Seu Benedito se recolhia. Dormia assentado a uma poltrona onde se aninhavam uma penca de gatos.

A noite para ele era curta. Amanhecia antes do nascer do sol. Era esta a rotina do amigo Benedito. E nunca o vi se lastimar.

E tem gente que ainda se queixa da vida que leva. Dormindo até tarde.  Sem nunca ter passado necessidades.

Um dia meu amigo roceiro me disse, com aquele sorrisão desvestido de maldade: “quer saber? Não preciso coragem para enfrentar as dificuldades. Já me acostumei com tudo na vida. E ela tem sido fácil desde quando entendi, que a vida é combate, que aos fracos abate, aos fortes aos bravos, só deve exaltar”.

Espero que a coragem do Seu Benedito me acompanhe até meu último grito.

 

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