Malabares dos saltimbancos trapalhões

Quem ainda não viu, num cruzamento de rua movimentada, num dia de forte calor, jovens fazendo malabarismos com apetrechos que lembram os usados em circo, fantasiados de palhaços das perdidas ilusões, ou engolindo e cuspindo fogo, é como se o circo visitasse à cidade, espalhando alegria por onde passa, em lona armada, sem animais expostos à curiosidade de outrem, sem a agitação dos picadeiros circenses, despedindo-se a magia escondida dentro de mim, menino.

Todos comigo irão concordar: a crise grassa na praça como erva daninha em canteiro de jardim plantado em terra fértil. Muitos vendem o almoço para pagar a janta. Os carnês de prestações estão mais atrasados que trem das onze, que acaba passando às seis da tarde. O cartão de crédito atrasado fez perder o crédito do pobre funcionário da multinacional que se mudou de vez do país. Por falta de vender o produto resultado do suor dos empregados. A marmita do bóia fria esfriou de vez, debaixo dos pés de café secos em dias de colheita que fez o preço do produto despencar como as águas do riacho rumo ao mar poluído. Os empregos esperam vagas naqueles anúncios de jornais, matérias não pagas, letrinhas miúdas que nem com óculos de fundo de garrafa se permite ler. As praças, à sombra de árvores centenárias, multidões irrequietas conversam sobre a crise nefasta que assola o país do faz de conta ao qual apelidaram de Brasil.

Por toda parte, de norte ao sul, de leste a oeste, não se fala noutra coisa. O desemprego, a falta de dinheiro, a crise avassaladora que muge assoprando alto no ouvido mouco de cada um de nós.

Há dias tenho visto e revisto jovens praticando a arte circense nos cruzamentos de rico movimento por toda cidade. Não apenas aqui, bem como em outras irmãs.

Geralmente são em pares. Homem e mulher, dois homens, via de regra casais.

O ponto de partida do início da movimentação dos jovens fica perto de onde moro.

Numa pracinha enjeitada, local onde cavalos são atados a árvores que ali residem, ou cães usam aquele resto de verde como latrina do mundo.

Hoje mesmo os vi. Eram dois jovens. Um rapaz escuro, e uma moça morena, com certeza mais jovens que meus dois meninos, que já perderam a meninice para os adultos que se tornaram.

Ambos exercitavam os malabares. Igualzinho ao prático de circo que um dia observei depois que a lona foi aberta no meu passado, e depois se fechou, num derradeiro ato que só eu vi.

Não resisti. Fui ter com eles. Podia, na hora, parecer atrevimento de minha parte indagar sobre de onde eram, por que faziam aquilo, por que Lavras foi a eleita para o espetáculo de pouca lucratividade, com certeza bem menos que o circo de lona rasgada que um dia entrou-me cidade adentro e acabou se despedindo dias depois. Deixando em seu lugar um elefante abandonado, três cavalinhos nanicos atrelados na mesma árvore da pracinha perto de minha casa, além da saudade que até hoje me cavouca o coração.

O rapaz respondeu de pronto a minha inquirição. Disse ser de outra cidade perto. Que não deu certo com os pais. Que usou drogas e teve a própria vida transformada em uma droga. Que tentou se remendar e não conseguiu. Não quis estudar, virou asno. Gostaria de ter sido ator. Os palcos a ele agradeceram, fecharam-lhe as cortinas, e nunca mais se abriram.

Já a moça do sorriso retrancado pouco ensejou deixar sua vida abrir as cortinas a mim. Um reles intrometido, um médico que nem se apresentou ou aposentou-se, embora tivesse idade para tanto.

Depois de insistir alguns momentos, parcos, já que tinha de descer a rua rumo ao trabalho, eis que a dupla começou a palrar. Talvez por que tenha molhado as suas mãos com uma nota miúda de cinco reais.

A moça matraqueou em primeiro lugar.

“Sou de Arantina. Da mesma Minas Gerais que o senhor. A exemplo de meu partner não dei certo com minha família. Acabei me tornando mulher de vida fácil. Foi então que aprendi o quão dificultosa é a vida de mulher de vida presumivelmente fácil. Vida de puta é dura. Foi quando decidi botar os pés na estrada, sair pelas muitas minas dentro das gerais, e acabei chegando aqui”.

Ela parou no por aqui.

O jovem moreno, cabelos presos em tranças rastafári, como um Bob Marley desnutrido, abrasileirado, pouco confabulou comigo mesmo. Os cinco reais já haviam se esgotado, não a minha vontade de escrutinar-lhes mais das sua vidas erráticas.

Dias depois, ao passar, desapetrechado de pneus e rodas, quase não ando de carro, pelo mesmo cruzamento de uma rua movimentada, aquela que me dirige sempre ao meu passado, para a casa onde moraram meus pais, por volta das três e meia da tarde, deparei-me com um cenário bastante inusitado.

A dupla da praça enjeitada fazia malabares no sinal luminoso. Enquanto o vermelho pedia tempo a moça morena exibia a sua arte de pouca arte.  Uma vez o verde amadurecia ela parava e passava as mãos a esmolar o pago pela exibição de pouquíssima duração. Muito menos que a florada dos ipês. Não vi, daquela vez, nenhum mísero tostão brotar em sua mão. Nem uma notinha sequer. Nem mesmo uma prata de um real.

Na volta da academia, ao passar no mesmo entroncamento, vi o mesmo casal recostado ao passeio quente. Ele não respirava. Parecia, não apenas parecia, estava em verdade morto.

Já a jovem morena, a de fala lacônica, que fora prostituta de vida difícil, em verdade estava quase à beira de visitar a outra vida. Do lado de lá da nossa vida.

Dias depois assisti ao funeral dos dois quase meninos. Apenas alguns malabares enfeitavam o caixão da dupla infeliz, dos saltimbancos trapalhões.

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