Meus projetos de sonhos

Projetar sonhos com esquadro, régua, riscos no papel feitos por algum engenheiro, seja ele arquiteto, ou pessoa afeita à cálculos precisos, no meu entender é missão impossível.

Sonhos se projetam burilando a mente, caixa cheia de células cinzentas, recheada de sentimentos, maldita sensibilidade que me atravanca a alma, imortal, ao contrário do invólucro que a recobre, nosso mísero caixote feito de carne, osso, músculos e conteúdos, todos eles mercês de apodrecimento, ao final da nossa missão aqui na terra.

Para aquele recém nascido, de pouco emerso para fora do útero, torna-se fácil projetar os sonhos. Para ele a vida, o futuro, com um curto passado, apenas nove meses antes de ser gerado, seu presente é um presente para os pais, marinheiros de primeva viagem, para os avós mais ainda, prognosticar o que vem pela frente, projetar sonhos, com tanto tempo de vida, parece ser uma empreitada sem muitas complicações. Já para o ancião, o sênior, o velho, com que nome quiserem apelidá-lo, como exemplo cito eu, projetar sonhos, projetos de vida, que vem a ser a vida, senão um amontoado de senões, decepções, desilusões, quantos “ões” me permitem declinar, fica-se exposto a pouco prazo de vida que a morte, madrasta cruel, pois se morte fosse mãe ela não nos viria buscar, com sua foice reluzente, com sua vestimenta de caveira negra, ávida por abocanhar o que resta da vida do pobre velho quase entregue a carruagem dirigida por um séquito de urubus rabugentos, em direção a algum lugar, dizem muitos que é o céu, já eu duvido da sua verdade, pois o céu se esconde bem perto de nós, basta que a gente consiga enxergar a felicidade em qualquer lugar.

Hoje tentei projetar meus sonhos. Inda de pouco fui ter à roça. Local pra onde sempre vou, quando os sábados me permitem ali chegar. Levantei-me à hora de costume. O ancião que dormita dentro de mim tomou o hábito de dormir pouco. Não sei o exato motivo. Talvez seja pelo pouco tempo que me resta para ver o azul do céu, o verde sem vergonha do mar, o vôo lépido do beija-flor, a borboleta com sua vida fugaz.

Antes da chegada ao meu pedaço de chão, agora em mãos de quem entende da vida, pessoa de fala simples, comedida, creio que sem tempo de fazer projetos, pois o trabalho nele monta a cavalo, dei de olhos num amigo de bem mais idade que a minha.

Seu Zé Antônio estava assentado num barranco. Bem na encruzilhada de sua casa, olhos atentos, andrajoso e maltrapilho.  Parei a caminhoneta para um dedal de prosa. Perguntei-lhe, à queima- chapéu, já estava quente o sol, qual a razão da sua longevidade? Ele de pronto me respondeu, com ar de galhofa: “quer mesmo saber? Durmo antes das galinhas. Acordo as três da madrugada. Não ando de carro, faço do trabalho um meio de vida, não de morte”.

Saí do aperto de mão do amigo Zé Antônio tentando seguir o mesmo caminho. Talvez não consiga conquistar o mesmo projeto de sonho. Pois o amigo Zé não tem tempo de sonhar, muito menos de fazer projetos.

Uma vez na roça arriei o cavalinho Theo. Queria cavalgar, nem que fosse um cadinho. Não perguntei ao potrinho, de mesmo nome do meu primeiro neto, se ele tinha projetos de sonhos. Antes que ele desse a resposta já estávamos no alto do morro. Varamos estradas, atravessamos porteiras, sem destino certo. Foi quando avistamos, do alto do morro, um rabo de represa. Descemos por uma estradinha curta. Avistamos pessoas em reforma de uma casinha modesta. Eram diligentes pedreiros executando as suas artes. Não era propriamente um castelo, morada de reis e princesas. Mas, para os proprietários da casa de campo, era mais que um castelo. Era a realização de um projeto de sonho, que se tornava cada vez mais realidade.  Ficamos, Theo e eu, um curto espaço de tempo conversando com as pessoas amistosas que encontramos. Eram desconhecidos, mas, a partir de então, tomara que fiquemos amigos.

De volta à roça, hoje arrendada a um amigo, um projeto de sonho que não pude concretizar, antes de soltar o cavalinho Theo, de o refrescar com uma ducha fria, demos uma voltinha ao bordo da linda represa, por uma estradinha antiga, que ajudei a construir.

Ali agora mora um caramanchão. Ou um quiosque, como preferirem. Já eu prefiro os projetos de sonhos consumados.

Naquele terreno onde passou um trator, de vista para o lago verde, da represa do Funil, um pedaço de terra desnuda, resultado de uma terraplenagem feita em tempos idos, é onde gostaria de edificar um projeto de sonho. Que consiste numa casinha tosca. De poucos metros quadrados. Se possível feita em madeira bem tratada, como costumo lidar com os animais.

Essa casa no campo é onde gostaria de receber os amigos, gente simples do lugar. O projeto desta construção é bem modesto. Com a modéstia de um sonho pueril.

Quando encomendar o projeto daquele rancho, onde tentarei me esquecer das agruras da vida, da infância perdida, dos amores não correspondidos, dos rancores esquecidos, vou pedir ao engenheiro um projeto bem singelo. Um quarto apenas. Uma sala ancha, onde possa passar indeléveis momentos a retratar o belo. Tentarei não retratar o feio. Mas se ele quiser entrar na história que entre pelo menos sorrindo. Mostrando os dentes banguelas. Naquela casa encomendada, se for de madeira, melhor ainda, mas se for em alvenaria, não me queixarei. Já ia me esquecendo da cozinha. Que ela seja ampla, com um fogão a lenha que não vomite fumaça. Como aquele que aqueceu meu passado, na companhia amena e saudosa dos meus pais. O banheiro deve ser dotado de uma ducha de água fria. Dizem que água fria faz bem à saúde. Isso é afirmação do amigo idoso Zé Antônio.

Uma vez o projeto de sonho estiver concluído, vou fazer um esforço hercúleo para não deixá-lo vazio. A gente coleciona mania de edificar castelos, sem tempo de morar dentro deles.

Antes do almoço voltei à cidade. Ainda iria a outra casa de campo. Bem perto de outro lago.

Agora, passadas às quatro da tarde, olhando da janela de onde escrevo, pensando em projetos de sonhos, olho da janela do sétimo andar, e vejo, naquela casa que ainda me olha pela janela dos fundos, estabeleço pra mim uma meia verdade. Quando desejar edificar projetos de sonhos, vou fazê-los com os pés no chão, evitando tocar a cabeça nas nuvens.

Mesmo assim, se não conseguir, não irei deixar os projetos de sonhos fazerem ruir os escombros da saudade madrasta que não me impede de sonhar…

 

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