Num parece

Parecença.

Palavrinha que muitos pensam não existir nos dicionários.

Mas existe com a sinonímia de ser quase igual. Parecido não aparecido. Similitude tanto na forma fisionômica, caráter e por ai vamos nós.

Era ainda cedo quando, na noite de ontem, tive de ir a farmácia comprar um remedinho para minha esposa. Algumas gotinhas de dipirona foram o bastante para aliviar seu estado febril.

Na volta, quase na porta do meu prédio, demos de cara com um velho colega de fardas. Não carece relembrar que não pertencemos a nenhum exército da salvação. Mas como médicos tentamos salvar vidas quando elas quase se vão a outro lugar desconhecido.

Foi dele que ouvi esse galanteio. Não seria demais lembrar que somos quase da mesma idade. Penso ser mais velho alguns anos apenas.

“Paulo. Você não muda”.

Uma vez no apartamento me olhei no espelho. E ele me disse: “ah! Ledo engano. Até parece que você, que ainda pensa ser menino. Olhe-se de novo. Não vês que seus cabelos estão grisalhos? O que resta deles. Seu sorriso nada me lembra aquele sorrisinho maroto. Que foi pilhado em fragrante delito ao olhar as pernas roliças de sua coleguinha que se assentava logo a sua frente? Vê se te enxerga melhor. Procura um médico de olhos. Deve ser a tal catarata que lhe empana a visão capenga”.

Desgosto com o dizer do espelho não dei crédito ao que ele me disse. Simplesmente agradeci ao dito amistoso do meu colega e pensei com meus botões.

Qual seria o segredo da longevidade? De não aparentar a idade que temos?

Quando dizem que não pareço ter a idade que tenho seria mera falsidade? Ou mais uma inverdade que não devo acreditar?

Pra mim a idade verdadeira não tem a verdade nela embutida. Temos a idade que nos convém.

Aos dez desejamos chegar logo aos mais de vinte. A maioridade nos acena com o desejo de liberdade. Já aos mais de trinta queremos voltar pra trás. Ao chegar aos quarenta sentimos por dentro que o melhor é não ir tanto adiante. Uma vez ultrapassados os cinquenta alguém nos diz que já passou da hora de procurar um urologista. E, assim que vamos além dos sessenta mal conseguimos fazer nem undécimo do duodécimo do que éramos capazes aos menos de trinta. Pena que ao chegarmos aos mais de setenta nem de longe podemos prever quantos anos mais nos restam. Melhor assim.

Meu segredo de não aparentar quatro a mais de setenta digo agora.

Não uso carro. Ando mais que notícia ruim. Faço meu cérebro trabalhar mais do que seu dono.

Faço do aprendizado a mola propulsora que me move a frente. Não me esquivo das modernidades. Tenho por elas em alta estima. Mas tenho pelo passado um chamego sem igual. E como me sinto bem entre os jovens. Da mesma maneira tento me comportar de acórdão com o aquilo que me convém. O bom humor faz meus dentes clarearem. O sorriso me faz companhia sempre. Mesmo que a infelicidade prepondere. Não procuro doenças. Como médico tento evitá-las exercitando-me diuturnamente. Dou de comer aos meus olhos não dando valor as dietas preconizadas aleatoriamente. Acordo ao nascer do dia. Durmo ao cacarejar das galinhas.

Noutro dia, ao caminhar pelas ruas, descendo e subindo pelas avenidas. Ao me cruzar com um desconhecido. Foi quando ele me disse: “doutor. O senhor não se lembra de mim? Sou aquele que lhe deu tanto trabalho na minha operação de próstata. A sonda entupia e o senhor, em plena madrugada, tinha de voltar ao hospital. Isso foi há mais de quarenta anos. Ou mais. Hoje conto com mais de setenta. Creio termos a mesma idade. Mas, pelo visto, você tem parecença de ter muito menos.”

De novo, ao entrar no apartamento, desdenhei do dito daquela superfície espelhada. Que teve a ousadia de me dizer a verdade.

Mas hão de concordar com aquilo que os outros dizem: “eu num pareço a idade que tenho”.

 

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