O hoje daquele homem se resumia no ontem

Zé Passado não se desgrudava de tempos pretéritos. Era um saudosista extremado.

Aos sessenta e oito completos naquele março que entrava abril adentro parecia andar atrás. Não pensava no futuro. Era o antes que o seduzia.

Vivia como se tivesse apenas vinte anos. Ou menos ainda.

Quem o visse saindo de casa, mochila às costas, curvado sobre uma coluna torta, logo pensava que o velho Zé estava ficando insano.

Aposentado por invalidez aos menos de quarenta anos, por um acidente de trabalho que em verdade aconteceu não por descuido, e sim por causa de uma prensa hidráulica que acabou esmagando-lhe a mão direita. Desde então nunca mais conseguiu trabalhar. Foi encostado na previdência. A mesma que dizem estar falida. Não por culpa dos baixos salários pagos aos trabalhadores do andar de baixo. A razão é outra. Bem conhecida dos cidadãos de bem.

O pobre homem ficava dias e mais deles pensando na vida pregressa. Nos anos bons quando ainda era criança.

Não tirava os pais da lembrança. Nem mesmo a rua onde nasceu.

Nos dias de agora vivia só. Casou-se por duas vezes. E não foi feliz com as esposas. Elas saíram de casa por se cansarem daquele homem que vivia pensando no ontem. Embora o hoje fosse deveras importante.

Zé era feliz a sua maneira. Vivia de relembranças. A infância o cortejava. A meninice o fazia pensar usar fraldas. Que acabaram se transformando em fraldões. Quando um acidente vascular cerebral o jogou a cama.

Aos setenta anos, sem perspectivas de melhoras, Zé, ainda lúcido fazia da memória uma razão de continuar a viver.

Como não podia sair de casa passava todas as horas do dia revendo álbuns de fotografias. Bem como as cartas amarelecidas guardadas com todo cuidado num baú de lembranças.

Quiseram os anos que o solitário Zé, naquela situação de penúria, se locomovendo em cadeira de rodas, sem ninguém a zelar por sua figura, ainda permaneceu anos e anos nesta vida desiludida.

Não recebia visitas. Era ele quem dele cuidava como podia.

E era pouco que lhe bastava. Não assistia à televisão. As modernidades que ela trazia não lhe diziam nada. Já que vivia pensando em coisas antigas. Na velha praça que acabou cedendo lugar para espigões. No bonde ancião que veio a descarrilhar dos velhos trilhos.

Aos quase oitenta anos ainda vivia refém dos velhos tempos. Então já era um velho carcomido pelas lembranças.

Zé Passado quase chegou aos cem. Já com a memória meio gasta. Vivia pelo passado que nunca o abandonou. E como eles se davam bem.

Aos noventa e oito se despediu de suas lembranças.  Na mesma cama onde foi encontrado morto. Revendo os velhos álbuns de fotografias. Sonhando um dia ser de novo criança.

Na sua frase lapidar alguém escreveu isso.

“O hoje daquele homem se resumiu no ontem. E ele foi feliz assim”.

Até que o passado lhe veio buscar.

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