Devaneios da senilitude

Ficar velho é uma das certezas que trazemos de berço. Deixar a infância pra trás da mesma forma é outra evidência inarredável. Morrer, infelizmente um dia acontece. Ninguém fica pra semente, já dizia minha avó. E por quanto tempo ficaremos por aqui? Uma incógnita que não pretendo decifrar. Que a morte venha no tempo certo. Enquanto os sonhos perdurarem. A saúde persistir. O desejo de viver não se despedir da gente num quarto de hospital qualquer. Vivendo às expensas de aparelhos que prolonguem nossa vida, definitivamente não desejo que este fato aconteça a mim.

Que eu viva enquanto os sonhos perdurarem. Que não seja um peso morto à sociedade. Que meu corpo esquálido não pese aos ombros da família que tanto amo. Quando for assim, que seja lembrado num retrato na parede. Um retrato de quando ainda podia carregar meus netos, fazer com eles traquinagens, assistir ao lado deles aqueles desenhos animados, ainda podendo discernir entre o certo e o errado. Sem aqueles olhares vazios, perdidos na incerteza do nada.

Quando a velhice chegar, ainda não me sinto um sapato velho, encostado a um canto, sem nenhuma utilidade, que eu seja respeitado pelas atitudes tomadas durante a vida adulta.

Quando a senilitude vier, e eu ainda puder caminhar a passos trôpegos, que não me impeçam de sair à rua. Não me privem da liberdade de ir e vir. Nem ao menos de dirigir meu próprio auto.

Uma vez que a idade avançada buzinar na esquina, quando estiver assentado a um banco da praça, ao meu lado apenas desejo que permaneçam os amigos, que ainda conseguem entender a saudade que sinto da minha infância perdida.

Quando a idade provecta chegar que ela chegue durante a manhã bem cedo. Bem sei que o velho dorme pouco. Respeitem seu sono curto.

Quando estiver idoso, que continue vaidoso. Tempo terei de sobra. Não me tolham o desejo de pentear o que restou dos cabelos brancos. Ou quem sabe esticar um cadinho as olheiras.

E caso eu estiver viúvo não me impeçam de algum namorido. Ainda sou capaz de fazer sexo. Nem que seja com a ajuda de algum comprimido.

Bem que sei que velho goza de algumas prerrogativas. Deixem-me que vá ao cinema. Assistir aquele velho filme na matinê da minha velhice. Não vou pesar no seu orçamento, já que pago meia entrada.

E, se por acaso estiver numa cadeira de rodas, usando fraldões ou babadô, por favor não riam na minha cara. Se quiserem sorrir de mim o façam sem que eu perceba.

E mais uma coisa lhes peço, sei que tenho o direito, depois de tantos anos cuidando dos filhos, não me tolham a alegria de passear meus netos.

Um dia não mais estarei por aqui. Nem sequer imagino quanto tempo me resta.

Mas durante a estadia final, durante os anos que me contemplam, não me ignorem durante as conversas à mesa do jantar. Se bem que ouço pouco bem posso ouvir algum comentário que me desagrade. E terei de deixar a mesa, amuado, desolado, por alguma opinião ignominiosa sobre a velhice.

Ainda não me sinto velho. Estou em plena forma. E, se por acaso alguém me chamar de velho gagá, direi, entre olhares de troça: “prefiro tio”.

Quando estiver em verdade incapacitado de exercer as minhas atividades rotineiras, sentindo-me inválido, total o parcialmente, que não me coloquem numa casa de idosos. É nesta casa, por mim construída, que desejo passar meus últimos dias. E nem vai ser preciso da piedade dos que me sucederem. Pois o que percebi em vida é mais do que suficiente para meu próprio sustento.

São tantos os desejos que deixo em testamento, por favor, não façam pouco caso deles.

Não permitam que meus livros apodreçam numa caixa de papelão qualquer. Façam deles doação a uma escola. Que eles continuem servindo para que os interessados se instruam. Nada como uma boa leitura para o nosso enriquecimento intelectual. Assim espero. E quero.

Por fim, não querendo me alongar tanto, nestes devaneios de senilitude ainda consciente, se por acaso me faltar a razão, não me internem numa casa de insanos. Bem sei que os limites entre a sanidade e a louquice são tênues como um fio de linha.

Tomara que meus devaneios finais não sejam o final, e sim o começo.

 

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