O dia em que o velho surtou

Ao completar oitenta anos, naquele maio de outono, Seu Antenor acordou com a mesma disposição de sempre.

Nunca havia ficado doente. Saúde a dar aos outros. Rijo como pau de amoreira. Famoso por aquelas bandas por ainda trabalhar rotineiramente.

Acordar ao nascer do dia era com ele mesmo. Nem bem o sol mostrava os dentes aquele senhor, nascido e criado na roça, já estava de pé fazia tempo.

Começou como empregado rural. Mas logo enricou. Diziam, nos arrabaldes, que Antenorzinho, assim que mostrou os primeiros dentes, que logo faltaram, acabou por comprar a terra do patrão.

Acontece que aquele jovenzinho de maus bofes logo emigrou pra cidade. E deixou a imensa propriedade nas mãos do esperto Antenor.

Eram mais de quinhentos alqueires de terra produtiva. Que logo se desdobraram em mais de mil.

Antenor angariou fama de bom negociante. Foi fazendo negocinhos com os vizinhos, cadinho a cadinho, até amealhar um enorme latifúndio. Onde plantava café, juntava gado de corte, estendendo sua propriedade até onde a vista descansa.

Aos quarenta anos resolveu se casar. Com uma morena fogosa que um dia se escafedeu. Fugiu com o motorista do caminhão leiteiro. Por quem se apaixonou.

Antenor tornou-se um eremita. A companhia de terceiros não era para ele necessidade básica.

Sabia cozinhar como se fosse um chef. Cuidava do casarão com raras habilidades.

Aos sessenta fazia de tudo como se tivesse trinta. Empregados apenas só dispunha de dois.

Mesmo assim, vivendo por ele mesmo, era feliz e bem o sabia. Era singelo como um pé de maçã carregadinha de frutas maduras.

Acontece que, naquela manhã do mês de maio, Seu Antenor acordou com um estranho pressentimento. Sonhou que ficara enfermo.

Tossiu a noite inteira. Uma febrícula desconhecida fê-lo aumentar a temperatura.

Uma dor nas articulações sobressaltou-o. O que o fez procurar os cuidados de um médico amigo.

Uma vez na cidade perto, depois de enfrentar uma longa espera, foi-lhe diagnosticado o tal coronavirus.

Seu Antenor passou dez dias confinado. Quase partiu rumo ao infinito.

Foi-lhe passado goela abaixo alguns tubos por onde conseguia respirar.

Deixou o hospital prometendo cumprir uma longa quarentena. Mas quem disse que o velho Antenor ficaria em casa? Acostumado ao trabalho pesado da roça não se ausentou.

Acordava ao cantar do galo. Montava o cavalo de estimação. E percorria em longas cavalgadas cada centímetro da propriedade. Com a mesma disposição costumeira.

Maio passou a galope. Junho amanheceu mais frio ainda.

Naquela dia de céu azul, com a temperatura oscilando entre os cinco e dez graus, o velho Senhor voltou a sentir os mesmos sintomas.

Desta vez foi preciso que o levassem ao hospital. Ele mal tinha forcas para se levantar.

O diagnóstico não foi outro senão a tal virose maldita.

O velho Antenor foi condenado a ser entubado, com a respiração assistida, até o dia em que melhorasse.

Mas, no quinto dia da efeméride, Antenor, não resistindo a permanecer no leito, teve um surto de insanidade. Foi encontrado vagando perto da unidade de internação. Sem saber de onde veio e para onde iria.

Dizem, até hoje, que o velho Antenor, nos tempos de agora, continua vagando na pandemia.

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