A rotina que matou Seu Fidêncio

Sempre a mesma hora, aos mesmos minutos, debandavam os segundos, aquele homem madrugador acordava ao nascer do sol.

As mesmas incumbências o esperavam. Tomava seu cafezinho magro. Não sem antes ir ao banheiro. Lavava o rosto com água gelada para espantar o sono. Dormia pontualmente antes das seis e meia das tardes preguiçosas.

Desde a mocidade assim se sucedia. Fidêncio era um trabalhador contumaz.

Acostumado ao trabalho duro da roça sempre viveu desta maneira. Colecionava calos nas mãos assim como olheiras ladeavam-lhe o canto dos olhos.

Desde a tenra mocidade sempre aprendeu, do pai, a fazer tudo sempre igual.

Esforçado, aprendeu que o trabalho não mata ninguém.

Cresceu espremendo o mojo das vacas. Por elas tinha verdadeira afeição.

Diziam, nos arrabaldes, que por uma delas tinha um chamego. A tal Braúna, sempre que chegava ao curral, levantava o rabo com sinais evidentes de admiração. Uma linda bezerrinha em verdade era a cara deslavada do pai. Que não seria outro, não fosse à incompatibilidade de genes, o mesmo cuidador das vacas. Daí ela ser batizada de Fidencinha. Tal a parecença com o pai.

Passaram-se os anos. Contavam-se os dias.

E a vida continuava na mesma monotonia costumeira.

Fidêncio envelhecia a cabelos vistos. Aliás, bem cedo os perdeu. Restando um enorme descalvado que cobria toda a parte de cima. Restando na parte dos lados uma mecha de fiapos brancos.

Com o tempo passando, a vida se deslocando a frente, Fidêncio perseverava na mesma rotina. Mal tinha tempo para ir à cidade.

Ao atingir seus sessenta anos pareciam mais. A mocidade o deixou pra trás. Graças ao bom pai a saúde não o abandonou até certo dia.

Até que, numa manhã de outono, com o sol brilhando lá em cima, Fidêncio acordou com um estranho pressentimento. Sonhou que ficara doente. Apesar de que nenhum sinal indicasse que a enfermidade se mostraria naquele corpo antes rijo.

Acordou a mesma hora de sempre. Foi ao banheiro exonerar a bexiga.

Foi com enormes dificuldades que assim o fez. A urina teimava em não sair.

Felizmente, graças à ajuda de um amigo de pasto, que o levou ao hospital mais perto, foi lhe enfiada uma sonda pela uretra. A partir de então nunca mais se viu livre daquele artefato que o permitia urinar.

Por não desejar se operar da próstata passou a viver com aquele canudinho fininho. Tinha de trocá-lo a cada mês. Uma diligente enfermeira amiga era quem o fazia de bom grado.

Acontece que um belo dia ela faltou. A tal sonda entupiu. A bexiga quase estourou.

Foi quando ele apareceu no meu consultório. Bufando de dor. Foi preciso muita paciência para aliviar-lhe o sofrimento. Não foi por falta de convencimento que ele não quis se operar. Bem que tentei. Mas foram debaldes as tentativas.

Um ano depois soube notícias do velho Fidêncio. Ele veio a falecer da mesma forma em que viveu. Ainda em uso da mesma sonda. Na mesma rotina de sempre.

Ainda dizem que rotina não mata. A vida seria insustentável não fossem pelas mudanças.

Daí eu sempre mudo de roupa, apesar de não mudar de humor.

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