” Doutor, falta-me tudo”

Às vezes fico pensando: o que me falta nesta vida, aos setenta anos?

Tenho saúde a emprestar aqueles que necessitam. Clarividência para discernir o que me faz bem ou mal. Disposição para trabalhar nem sei quantos anos mais. Uma família adorável. Tanto aquela onde nasci tanto a outra que elegi para viver ao lado. Não tenho motivos para queixumes. Acordo cedo, tenho a felicidade de ainda caminhar sem maiores dificuldades. Corro quando posso. E amo a vida em sua complexidade.

Tomara me seja permitido viver muitos anos mais. Daqui do alto, do meu sétimo andar, percebo o quão insignificante somos nós diante da grandiosidade de um ser superior. Que não se deixa ver. No entanto Ele se manifesta nos mínimos detalhes: no voo dos pássaros, no sol que nesta hora fica escondido por entre as nuvens, nas crianças dormindo, na inocência dos pequeninos, na beleza da natureza em todos os seus matizes de cores.

Não me falta nada nesta altura da vida que tenho levado. Talvez uma pitadinha de desamor. Já que o amor que sinto por todos extravasa a quantidade que brota do meu coração.

Não sinto falta de nada. Poderia ter mais dinheiro na conta bancária. Mas, seria este detalhe que me faria mais feliz? Talvez não. Quiçá sim.

Na minha profissão já atingi tudo que desejaria. E ainda me sinto capaz de continuar por anos a fio. A experiência acumulada me permite discernir o que é melhor para os pacientes. O que deve ou não ser feito frente aquela doença que o aflige.

Um dia destes, parece que foi na semana passada, assentou-se aquela cadeira defronte a minha um rapaz um tanto quando atormentado.

Era bem jovem o reclamante.

Estava um tanto quanto avexado ao começar a contar a sua história.   Tentei colocá-lo a vontade. Em alguns minutos penso ter conseguido.

Foi assim que ele começou: “ doutor, falta-me tudo. Não tenho em casa afabilidade que gostaria de ter. Meu pai ignora a minha presença. Não me sinto a vontade de abrir meu coração junto dele. De tempos pra cá descobri que não tenho desejo pelas mulheres. Prefiro a companhia dos amigos. Um deles, em especial, é o que me faz pensar no amor que deveria sentir pelas mulheres. No entanto ele faz meu coração pulsar com maior intensidade. Amo aquele rapaz como deveria ser o meu encanto pelas fêmeas. Daí a angústia que tenho sentido”.

Naquele momento quase perdi o prumo. Não estava acostumado, como urologista, especialista que trata de doenças orgânicas, a manusear comportamentos dúbios como  o daquele rapazola. No entanto respirei fundo. E tentei aconselhá-lo da melhor forma possível.

Pedi-lhe calma. Que repensava as suas preferências. Não era totalmente equivocada aquela predileção por outra pessoa do mesmo sexo. Mas que pensasse nas barreiras que a sociedade machista a ele tentariam impor.

Em poucos minutos de consulta percebi que ele estava mais aliviado. Falava sem maiores constrangimentos.

Comentou que o outro rapaz parecia sentir por ele a mesma simpatia. Mas, que até o presente instante tudo não passou de uma troca de olhares, uma empatia  recíproca, uma promessa que talvez um dia tudo fosse dar certo.

Ele deixou meu consultório um tanto mais aliviado. Com estas palavras: “doutor, falta-me tudo. Menos me declarar aquele amor. Quem sabe um dia o senhor vai nos ver pelas ruas de braços dados. É o que me falta para ser feliz”.

Deixei-o ir sem mais palavras. Desejando a ele toda a felicidade do mundo.

 

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