Não tenho nada a perder

O envelhecimento tem seus privilégios.

E suas perdas também.

Perdemos a carteira de identidade num banco de uma praça qualquer. Esquecemos o número do nosso próprio celular. Mal nos lembramos da data do nosso aniversário. Já dos nossos netos nunca iremos esquecer. Temos a memória afiada quando se trata de fatos pretéritos. Mas o que comemos no dia de ontem fica relegado ao olvido do esquecimento.

Não temos tanta pressa quanto nos dias de outrora. A sofreguidão se torna coisa do passado.

Perdemos a memória. Mas se alguém a encontrar, por favor, ma entregue antes que o futuro nos diga: “pra quê? Você já se lembrou de tantas coisas importantes. Deixa sua memória em paz”.

O velho não tem quase nada a perder. Já perdeu a esposa e companheira de tantos anos.  Já nem se lembra mais de quando a encontrou mocinha no rela do jardim. E quando se deu o primeiro beijinho na face que a fez ruborizar todinha. Mal sabia ele que não foi o primeiro nem seria o derradeiro. E a elazinha prometeu amor eterno. E, se ela morresse primeiro elezinho não iria durar nem um ano inteiro. Mas ainda está vivo a espera do momento mágico do reencontro. Com a sua velhinha que um dia amou como se fosse uma namoradinha dos velhos tempos.

O velho não tem nada a perder. Já perdeu um tempão a espera do primeiro emprego.   Já enfrentou filas enormes à porta de uma fábrica. Sendo preterido por alguém mais capacitado. Já passou fome e enormes dificuldades. Mas a tudo superou galhardamente.

O velho já foi criança, doce infância. Já soltou pipas e rolou na grama. Teve sua mesada congelada quando mais precisava de grana. Já vendeu chup chup que sua avozinha fazia. Já jogou futebol naquele campinho cambeta. Onde as traves eram feitas de bambu e a rede de um lençol todo branco que acabou encardido.

Aquele velho carcomido pelos anos já passou pela fase adulta. Já trabalhou e perdeu horas de sono. Mas nada conseguiu ajuntar até os dias de hoje. E agora sobrevive e mal vive à custa de um reles salário mínimo. Que termina antes do começo do mês entrante.

Uma vez idosos quase nada temos a perder. Já perdemos quase todos os dentes. E com nosso salário de fome não podemos, embora queiramos, ter uma dentadura nova a enfeitar nosso sorriso.

A nossa calva luzidia mais parece um campo de aviação. Onde não podem aterrissar aviões. Apenas teco tecos decolam e acabam subindo aos ares. Para o velho falta de tudo. Embora o ar seja abundante aqui fora seus pulmões não conseguem respirar. Por mais que queira, dada a bronquite asmática que o atormentou a vida inteirinha. Agora que mais carecia de um descanso um bando garotos malcriados faz dele de gato e sapato.

Ao velho só resta um consolo. Não tem mais que procurar emprego.  Não mais tem de pagar aluguel pois agora vive numa casa de idosos.  Não tem mais de esperar a visita de parentes pois eles o ignoram. Não tem mais que assoprar velhinhas no seu aniversário, pois no seu bolo predileto lhe deram o bolo.

O velho acaba tendo só tempo a perder.  Não conta mais anos e apenas desenganos. Vive a espera do momento final. Quando, ao fechar os olhos, pensa que tudo acabou. E outra vida tem começo. Será?

Não tenho mais nada a perder. Já perdi mais da metade da minha a espera de dias melhores. Mas eles não vieram.

Já tive sonhos. Já deixei a infância anos atrás. Já sonhei com um Papai Noel que não veio. Já fui o bom velhinho dos meus filhos.  Já dei presentes aos meus netinhos. Agora só desejo um presente. Que me deixem viver meus derradeiros dias em paz.

Deixe uma resposta