Não tenho culpa

Já disse e deixei escrito: “não me joguem aos ombros culpa maior que não tenho.”

Antes, ainda menino, quando me punham de castigo por uma arte que não foi minha. Dizia a minha mãezinha: “mãe querida. Não fui eu quem quebrou aquele lindo abajur. Foi um amiguinho meu. Que sem querer jogou uma pedra pela janela. E ela quebrou a vidraça. E a pedra caiu exatamente onde a gente não queria. Sobre o tal abajur pelo qual a senhora tinha tanta estima. Por favor, minha querida mãezinha. Perdoa meu amiguinho. Ele fez sem querer. E como ele chorou de medo de a senhora pensar que fui euzinho”.

E minha mãe olhava pra mim com olhos de pura ternura. E dizia mansamente: “cuidado Paulinho. Da próxima vez diga ao seu amiguinho para ter cuidado. Dessa vez ele está perdoado”.  Mal sabia ela que fui eu mesmo quem atirou a pedra. A culpa dessa vez foi toda minha.

Mais tarde cresci. As culpas continuavam a me perseguir.

Um dia, se bem me lembro, quando voltava da escola perdi a lotação. Subi a rua pensando na nota baixa que tirei em física. Já se avizinhava a hora do almoço. Minha barriga ronronava de fome. Nas mãos trazia o boletim. Receoso do que meu pai iria dizer. Foi quando pedi a uma coleguinha, cdf elazinha era, boa aluna em todas as matérias. Que me acompanhasse até minha casa. Pensava que na sua companhia meu pai iria me perdoar. Já de combinação com ela diríamos nós dois: “paizinho. Essa nota baixa foi devida a uma distração minha. A Ritinha, que estava do meu lado, quando da prova. Teve um mal súbito. Desfaleceu ao meu lado. E não tive como fazer uma boa prova”. Ah! Se mentiras tivessem pernas. As minha iriam correr tão longe que se perderiam de vista.

As culpas têm me perseguido no mais tardar dos anos.

Uma vez médico feito. Atentendo ainda num postinho de saúde modesto. Aonde ia a pé. Pois sempre tive pelas pernas em alta estima. Um dia me atrasei. Estava fazendo uma operação aqui pertinho na Santa Casa. E ela complicou. Tive de me apressar. No posto de saúde me esperavam dúzia e meia de pacientes impacientes. Um deles exigiu de mim uma explicação. Entrou na minha sala antes da sua hora. Outros esperavam impacientes. De nada adiantou dizer a ele onde estava. Que a cirurgia se alongou mais que deveria. Dessa culpa tentei me desculpar. Os outros enfermos entenderam. Mas ele não.

De uma culpa me penitencio. Nunca fui omisso na medicina. Se falhei alguma vez não me sinto culpado. As culpas de nossos atos falhos se devem a um sistema de saúde falido. O tal SUS, por mais que tentem corrigi-lo. Ainda mostra falhas no atendimento. As consultas atrasam. Gente que precisa tem de esperar tempos enormes para que suas mazelas sejam sanadas.  Cirurgias eletivas são marcadas para de hoje a mais de anos. Infelizmente atribuem a nós, médicos, os desacertos do sistema. Não nos joguem aos ombros sobrecarregados tudo de ruim que acontece no dia a dia de nossa difícil profissão.

Não tenho culpa de ter escolhido ser médico.  Essa escolha foi minha e não ponho a culpa nos meus queridos pais.  Eles simplesmente gostariam que eu fosse feliz na profissão que elegesse. E assim como me sinto ainda. Mesmo prestes a dependurar o bisturi.  Não as chuteiras que nunca foram de minha predileção.

Não tenho culpa de brotar dentro de mim tanta inspiração. Elas nascem e brotam como água da mina bem cuidada. Não me dão sossego a cada manhã. Podem dizer que elas me tiram o sono, mas não a alegria de escrever tanto.

Não me culpem se não tenho parança. A ansiedade me domina. Tenho a inquietude das asas de um beija flor osculando a flor.

Não me joguem aos ombros culpa maior que não tenho. Divido minha culpa com meus leitores.

Não tenho culpa de acordar tão cedo. Essa culpa reparto com a inspiração que me domina.

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