Tudo aquilo que se consegue facilmente perde o valor.
Isso me foi ensinado por meu saudoso pai. E a vida também assim me fez sabedor.
Em criança sonhava com aquele presente. Que vinha todo embrulhado num papel brilhante. Por sorte minha, ou seria por azar. Minha data natalícia quase coincidia com o natal. Já que meu aniversário cai num sete de dezembro e o natal alguns dias depois.
Mas a esperança nunca morreu comigo. Cruzava meus dedinhos e sonhava ganhar dois presentes. No meu aniversário ganhei uma bicicletinha de rodinhas atadas à roda de trás. E no natal uma patinete que até hoje guardo nas minhas recordações mais ternas.
A minha vida tem sido fácil. Momentos difíceis tiro de letra.
Sempre fui bom aluno. Estudioso nem tanto. Inteligente não me considero.
Sempre tive grande facilidade na lida com as letras. Em compensação com os números deles quero distância.
Desde quando me enveredei pelos caminhos acidentados da medicina tenho por mim que a escolha foi mais que acertada. Foi escolha unicamente minha. Meus queridos pais não opinaram.
Mal sabia qual caminho trilhar. Quantos anos de estudos deveria concluir.
Optei por terminar o curso cientifico na capital do meu estado. Deixei o Gammon, mas ele não saiu de dentro de mim. Dois de meus netinhos estudam nesse colégio mais que centenário.
Fui vencedor no vestibular depois de um cursinho bem feito. Enfim a escola de medicina me recebeu depois de dois anos inteiros a espera do curso deveras iniciar.
O cheiro de formol adentrou as minhas narinas. Hic mors gaudet sucurrere vitae (aqui os mortos se alegram em socorrer a vida) Estava escrito na sala de anatomia.
Matérias que pra mim nada tinham com a medicina. Fisiologia, bioquímica, histologia, embriologia, patologia, fugia delas como o diabo foge da cruz.
Foram cinco anos de estudos que me pareceram muitos mais. Enfim recebi o canudo. Um lindo papel pergaminho onde listava os nomes de cento e sessenta jovens esculápios ainda despreparados para começar a nossa difícil profissão.
Entre plantões intermináveis e estágios em distintos hospitais a nossa jornada mal começava. Éramos meio médicos. Faltava uma especialidade. E como foi difícil conseguir aprovação numa residência de nossa escolha. Muitas especialidades nos acenavam. A minha escolha recaiu na Urologia. Que até hoje me acompanha.
Faz quarenta e oito anos desde quando aqui cheguei.
Cinquenta e um desde quando me graduei.
Não conto anos. E sim muitos desenganos. Noites indormidas. Chamadas durante as noites. Cirurgias bem sucedidas. Pacientes satisfeitos com os resultados. Outros, nem tanto.
A medicina tem sido de muito aprendizado.
Aprendi na minha lida a tratar os pacientes. Não a doença que a eles importunam.
Se pudesse escolher de novo outra profissão seria exatamente essa. Médicos não podem se aposentar. Como sobreviver a mercê da previdência social? Que mal nos paga quantias irrisórias? As despesas sobem à estratosfera. A manutenção de nossa oficina de trabalho requer mais que um reles salário mínimo. Não podemos relegar ao olvido do esquecimento a nossa secretária. Fora os encargos sociais ela deveria receber, algumas cifras a mais de um salário mínimo. E nem sempre, depois de uma vida inteira dedicada à medicina, uma vez sendo tidos como idosos. Os pacientes aqui aparecem. E somos solenemente trocados por especialistas mais jovens.
Não é fácil ser médico. A nossa profissão é tida como um sacerdócio. E nem usamos batina ou rezamos contritos no púlpito de uma igreja.
Não tem sido fácil a nossa lida. Ser médico requer anos de estudos e especialização. Sujeitos que somos a execração de uma mídia sedenta de noticias ruins. Não se fala noutra coisa.
Doutor fulano de tal foi processado por omissão de socorro e negligência no atendimento naquela UPA lotada. Mal sabem eles quantos enfermos ele atendeu de bom grado. Infelizmente um deles não se sentiu satisfeito. E daí partiu a denúncia e o desagravo.
Somos falhos como qualquer outro. Atribuem a nós, médicos, falhas imperdoáveis. Mas se esquecem de que o sistema de saúde é uma entidade falida. E nos jogam aos ombros culpa maior que não temos.
Não é fácil ser médico não. Mas muito gratificante a medicina.
Pena que somos julgados à revelia. Depois de uma vida inteira dedicada à medicina.