“Ei doutor”!

Antigamente, nos bons tempos que lá se vão, deixando saudade no seu rastro, qualquer um profissional formado, nos bancos de faculdade, era titulado doutor.

Hoje para ser doutor carece de ter sido feito mestre, depois de um longo périplo pelos bancos duros e desconfortáveis de uma universidade, melhor que seja pública, pois as privadas são de alto custo, pobres dos pais, uma vez graduado, com o diploma na mão, ainda de pouca experiência, o profissional ainda tem de percorrer uma longa trilha, por caminhos de pouco futuro, a não ser que ele tenha capacidade e discernimento, continuar os estudos, e ser, enfim de fato doutor, ou pós- doutor, ou mais coisa de mais valia.

Outro tipo de doutor, o que não tem título superior, e sim qualquer um fulano de tal, que nunca foi o maioral, simplesmente veste uma roupinha de melhor qualidade, um traje elegante, para os padrões nacionais. Não aquela fatiota engomada, usada nos países de climas frios, onde a elegância se mostra nos mínimos detalhes. Seja no casaco escuro, nos chapéis de feltro ou de pele de animal peludo, na calça forrada de tecido quente, via de quase sempre em tonalidades escuras, no máximo se permite cor cinzenta, nos cachecóis de lã bem felpuda, nas meias grossas, que cheiram mal, pois o banho fica reservado ao dia seguinte, ou ao outro, ou a outro mais, as camisas, sempre alinhadas, nunca alinhavadas, paro por aqui. Está traçado o perfil completo da elegância.

Voltando a comentar sobre o tal doutor, pois sou doutor, não tenho mestrado, nem doutorado, nem como minha norinha querida um pós, que inteligência e capacidade aquela gauchinha tem!, no seu currículo de incontáveis páginas laureadas com louvor, graças a sua capacidade e humildade, ela se fez em verdade DOUTORA, com maiúscula procedência. Com louvor.

Quando ando pelas ruas da minha cidade querida, com tantos e tantos problemas a serem sanados, com paciência nosso novo alcaide vai matando um a um, tomara ele aniquile aquele  que causa aflição aos funcionários municipais, o tal salário atrasado herdado da gestão pregressa, quanto a saúde via SUS é a mais difícil, quase de impossível solução, de vez em quando assalta-me um estranho: “Boa tarde doutor. Ou “Ei doutor”!

Quando ouço o tal chamado, quando não estou de fone no ouvido, ouvindo músicas no meu i-phone último tipo, agora acoplado ao novíssimo aple watch que fala como telefone, marca o tempo das minhas corridas loucas, indica o  rumo a seguir, coisa de insano, paro, escuto, e vejo quem me chamou de doutor.

Quase sempre é a mesma pessoa. Um senhor meio biruta, que anda como eu, mais do que notícia ruim, a esmolar pelas ruas movimentadas, em horas de pico.

Já parei ao lado dele uma par de vezes. Foram tantas quantas nem sei.

Como descobri que sua intenção é pedir uma moeda, uma ajudinha, um agrado, quando tenho algo a ele dou. Quando não disponho simplesmente mudo de prosa, conto um causo, e lhe digo que não sou doutor. Sou um mero escritor, corredor, trabalhador, um reles cuidador de pintos, que não piam, nem reclamam. Quando assim acontece receito ao sofredor, do pinto que não sobe no poleiro, um remedinho azul, que foi, e ainda o é, a salvação da lavoura dos aflitos que não conseguiam empoleirar os ovos e o que fica por cima, na hora do vamos ver. Quem sobe mais. O ovo ou a colher? E não deixa na mão a mulher…

Sem o velho pedidor às minhas costas, em tempos recentes não o tenho visto, o “ei doutor” ficou esquecido nas minhas lembranças, de quando aqui cheguei vindo das terras de Espanha, precisamente de Madrid, para empunhar em carreira solo o bisturi.

Hoje em dia, diuturnamente, ao descer ao consultório, em horas tempranas, quando ouço alguém falando alto em bom tom, um “bom dia doutor”, ou um “ei doutor”, nem sempre paro.

Faço de conta de que não é comigo. E sim com minha querida nora, a quem cabe como uma luva o título legítimo de DOUTORA, com D maiúsculo, tenho dito.

 

 

 

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