O desmanche do Zé Previdência

Ao nascer, num dia de céu escuro, nuvens negras tapavam a bocarra amarela do sol, a família do pobre Zezinho, gente simples da roça, em vias de se aposentar, depois de anos e mais anos sujeitos a desenganos a cada estação: numa chovia demais, noutra de menos, na terceira a roça de milho não dava espigas, noutra o pezinho de milho mal deixava a terra sedenta de água, o pobre menino, batizado por um tio torto de Previdência Social (INSS para os íntimos), talvez por depender da aposentadoria, única forma de sustento já que a renda da roça mal dava para pagar a conta de luz, tudo deu errado assim que o pimpolho deixou o útero da mãe.

A boa gente da roça vaticinava: “não nasça neste país, menino ladino. Deixa para nascer nos Estados Unidos, onde a coisa pública funciona, não no faz de conta como aqui”.

Mesmo aconselhado por pessoas que lhe queriam bem Zezinho veio, meio contrafeito, a este mundo, justamente na parte de baixo do globo terrestre, zona quente, onde a corrupção faz escola, onde os pedintes desfilam sua miséria debaixo dos viadutos, onde, quando chove em demasia as ruas se enchem de água barrenta, deixando carros e pessoas ao desabrigo, perdendo tudo que juntaram nas suas vidas miseráveis, trabalhadores confiáveis, o mesmo epíteto não se aplica ao desgoverno, Deus nos livre dele!

O fato é que Zezinho Previdência, apelidado de INSS, contrariando as estatísticas conseguiu de bebê chorão virar adulto reclamão. Ele reclamava mais que trabalhava. Era comum vê-lo empunhando cartazes escritos em faixas nas grandes cidades participando de manifestações nem sempre pacíficas, vociferando bordões pré-fabricados, como: “Fora Temer, abaixo o PSDB, não sei mais o quê”.

O banco sujo da praça lhe era o local predileto. Ali passava grande parte do tempo a nada fazer. A outra sem ter o que fazer.

Era um ilustre desocupado, acordava cedo, antes da madrugada, para ficar mais tempo ainda a curtir o ócio, o que não sei fazer.

Junto a ele uma fonte luminosa, via de sempre estragada, carecendo de reparos, numa praça, ponto turístico principal da comarca. Aos seus pés um cão vira-lata, seu único e fiel amigo, de nome Zé Véio, a quem pedia, numa padaria das cercanias, uma coisa qualquer para comer. E ele comia os restos das sobras do simpático cão de rua. Que latia quando eu corria pelas vizinhanças, nas manhãs de domingo cedinho.

Aos mais de cinquenta anos, prestes a viver da aposentadoria do INSS, sem nunca ter tido carteira assinada, nem contribuir um tostão rasgado para o tal Instituto da Previdência Social, feliz da vida por receber, no começo do mês, o tão sonhado salário de aposentado, eis que o novo governo, numa tentativa gloriosa de salvar da bancarrota os cofres públicos, mudou as leis que regem a aposentadoria, a partir de então.

Foi um furdunço em todo o país do faz de conta, de nome Brasil. Multidões se amontoavam desorganizadas protestando contra a tal medida saneadora. As ruas foram fechadas ao trânsito. As lojas se viram a palpos de aranha fanha, numa crise sem precedentes. Se já não se vendia nada a partir da manifestação a coisa fedeu pior.

Foi quando passei pela rua principal em direção ao consultório. A rua que agora apenas sobe, não se pode mais estacionar, mais parecia um campo de guerra fria. Uns gatos respingados gritavam palavras de desordem. Outros impediam os carros de ir e vir. As pobres lojas, as principais da cidade, já não bastante a crise que as mordia forte, se viram ainda piores. Se uma ou outra foi saqueada, não posso afirmar. Não pude testemunhar.

O que pude comprovar, na minha passagem curta por ali, foi o Zé Previdência, o tal INSS, no meio da turba furibunda, sofrer um desmanche de tal ordem, quando avoaram porcas e parafusos, cérebro sem neurônios, peito sem coração, barriga sem nada dentro, pernas ele já não tinha, pés, em falta, em pouco tempo nada restou dele, a não ser a faixa que empunhava com os dizeres: “fora o governo, sou contra o desmanche da aposentadoria, final da monarquia”? (não precisa dizer que o regime monárquico é próprio de países de vanguarda, com gente respeitosa e educada, que o diga o povo inglês). Não para inglês ver.

O desmanche do pobre Zé Previdência acabou melancolicamente. Tomara o mesmo não ocorra ao país que amo tanto, ao qual deram o nome de Brasil.

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