Não são todos os dias quando a gente, desavisadamente, anda ao lado de algo estranhamente lindo.
Sei que minhas pernas andejas andam sempre levando os pés de muletas, o corto inteiro, ainda forte, por cima delas, um dia ele vai estar alquebrado, frágil, manquitola, talvez nem saia da cama, pra sempre, renego com veemência esse malfadado momento, caso se, um dia ficar inerme a um leito de hospital, mesmo se tratando de um apartamento confortável, minha família se mostrar solidária ao meu sofrimento, não mais podendo respirar a plenos alvéolos, ligado a tubos por onde escoam os excrementos, por onde entram alimentos, mercê de apenas levantar as mãos, abrir os olhos baços, sem poder exprimir meu derradeiro desejo: qual seja partir rumo ao lugar onde descansam meus pais, por favor, me deixem partir. Desliguem o último elo tênue que me resta de vida, deixem a morte me tomar nos braços descarnados de enfermidades múltiplas, permitam-me um último desidério: qual seja levitar rumo a algum lugar, tomara lindo como os campos da roça que adoro, depois de uma chuva benfazeja que acabou caindo no dia de ontem, salvando o secume da roça de milho, a última safrinha plantada com todo carinho pelo caboclo de mãos caludas, operoso trabalhador rural, que, graças ao bom pai ali mora feliz ao lado dos bichos, que não fazem mal a ninguém, o mesmo não posso dizer dos bichos- homens da cidade, os quais, em cada esquina soturna podem nos tomar de assalto, roubar todos os nossos pertences, mais e mais paupérrimos devidos à crise madrasta que nos domina.
A beleza pura, ou maquiada com as cores variadas do arco-íris, sempre foi o objeto da minha procura. A busco pelas ruas, pelas calçadas onde sempre ando, em manhãs tempranas, sobejamente aos domingos, quando tento me equiparar aos carros velozes, meu corpo idoso não permite tanta extravagância, mas, entretanto, de tanto buscar a beleza nas pessoas acabo encontrando-lhe as antíteses, a feiura explícita, tanto por dentro e por fora, apesar de apenas considerar a beleza das mulheres quando ela vem acompanhada pela doçura, pela graça dos movimentos, pela simpatia que de dentro delas emana, acompanhado do sorriso gelatina, o que se mexe cada vez que dele faço troça.
Ontem, terça-feira gorda, depois do almoço em meu lar que tanto idolatro, como exemplo cito minha família maravilhosa, ao deixar o portão do condomínio onde ainda moro nesta vida terrena, talvez nalgum dia me transfira de aqui para um lugar mais belo ainda, logo à portaria, antes da cancela que se levanta à passagem dos carros em movimento, dei de olhos numa linda figura de mulher.
Minha memória um tanto vencida pelos anos me informou, pertinentemente: “olha, você já conhece essa beldade. Foi ela que desfilou graciosidade e beleza nas roupas da nova coleção outono e inverno da sua amada esposa”. Talvez sim, foi o que afirmaram, displicentemente, os meus neurônios hiperativos que batiam cabeça dentro do meu eu cerebral.
Logo quando saímos da portaria do condomínio olhamo-nos com ares de cumplicidade íntima. Ela sorriu em minha direção. No esplendor dos seus pouco mais de vinte anos, talvez menos. Eu, usando fone de ouvido, destapei um deles, e a inquiri se por acaso seria ela o modelo que vestia a coleção da nova roupagem de outono inverno, da Barbara By Faschion Stilyst. Ela, com seus olhos cor de mel, uma boca própria a encostar os lábios em outros, fez que sim.
Descemos a rua em calçadas díspares. Ela, em trajes de academia, com um lindo tênis aos pés, roupa fitness coladinha ao corpo escultural, lábios rubros em vermelho pálido, trazia um sorriso pouco angelical.
Enquanto a linda moça se destacava pelas passadas largas, evitava os passeios lotados, já naquela hora temprana, eu a admirava de soslaio, quase tinha torcicolo ao fitá-la na outra calçada.
Andamos acelerados um ao lado do outro. Eu olhava em direção a ela. A linda moça modelo ficou alguns metros atrás. Num momento, quando já estava metros adiante, observei–a falando ao celular.
Com que afortunado varão ela confabulava? Seria com um namorado? Ou com outra fêmea, encantada com a beleza dela?
Até agora não sei dizer, se um, ou outro. O fato é que gostaria ter sido eu o seu interlocutor, talvez seu primeiro e único amor. Ou o derradeiro.
Não tivemos tempo de nos despedirmos. Ela estava atrasada para a academia onde se exercitava. Eu para deixar aqui, no meu computador, a crônica inda agora terminada.
Não sei se a verei novamente. Se amanhã, depois de depois de amanhã, ou num futuro imaginário.
Hoje, um dia depois de ter descido por um passeio contrário onde ela pisou, olhando incrédulo a sua beleza lírica e bela, temeroso de nela nunca mais passarinhar os olhos extasiados de tanta maravilha, penso, cá dentro de mim: teria sido uma miragem? Ou seria a linda moça, modelo, não profissional, mais um fruto de mais um devaneio, dos tantos que me assediam a imaginação, tantos que são, que nem sei contá-los todos.
Prefiro ficar com a imagem da linda moça loura fazendo conjecturas dentro de mim. Talvez um dia, quando será?, ela vai se integrar à realidade da qual tento me afastar, para fazer descansar o poeta que habita no mais profundo e recôndito esconderijo, que nem eu mesmo sei onde está…