Hoje me senti como eles

Embora o sol brilhasse em máxima intensidade na manhã de hoje, véspera de mais um feriado, a semana vai encolher mais um dia, ao acordar, bem cedo, antes das cinco, neste dia dez de outubro, ao sair de casa, madrugão que sou, desci a rua sentindo uma angústia mal explicada a me cavoucar o peito. Coisas de poeta, embora não o seja, pessoa de fina sensibilidade, própria de quem escreve e sente-se a cada dia de uma forma distinta.

Sou como o tempo.

Ora ele sorri sob a forma de um sol caudaloso. Ora ele se fecha. Deixando despencar de nuvens cinzentas aquela água bem vinda em forma de chuva que já vem misturada ao adubo para tintar de verde a natureza. Ora a anterior alegria se transmuta em tristeza. Sem motivo aparente. Sem algo que a explique.

No descer a rua, o relógio mostrava bem antes das seis, poucos comigo se cruzavam. As duas padarias pelas quais passava sempre estavam de portas fechadas. Na roça o retireiro madrugador já começara a primeira ordenha. As galinhas já haviam cacarejado. Os porcos já grunhiram famintos. A pastaria já estava prontinha a receber a vacada que, depois da ordenha, de bucho cheio, ruma pachorrenta em direção ao morro agudo, naquele piquete bem formado, cheio de capim alto.

Num certo ponto da caminhada, em direção a onde estou, no meu consultório onde passa horas fecundas o escritor, deparei-me com um enorme cão preto. Ele não se parecia a um cão de rua.

Pelo jeito que dele depreendi-me por certo teria sido um simpático filhotinho. Cujo único defeito foi ter crescido mais do que previsto. Tendo seus dejetos tornados enormes. Seus latidos foram feitos uivos de lobos famintos. Sua fome extrapolou um reles saquinho de ração. E, num dia inesperado, o pobre Totó, nome que dei ao cão preto, abanando o rabinho de felicidade, por pensar que ia fazer um passeio de carro junto a sua família, pela qual mugia de felicidade e amor canino, quilômetros mais longe o carro estacionou num lugar ermo e o pobre Totó foi deixado a ele mesmo. A exemplo de outros cães que hoje vagam a esmo pelas ruas da cidade. Cachorros vadios, que vivem à custa dos restos das sobras, por aí e por aqui.

Deixei o canzarrão ir de encontro ao nada. Creio que ele nem deu pela minha pessoa. Nesta manhã acabrunhada, tristonha e desenxabida, diria até mesmo depressiva, sem motivo aparente.

Segundos depois dei de cara com um sujeito dormindo ao relento. Era bem perto ao ponto onde antes vivia fumando seu cigarro um amigo ontem falecido. O bem amado ex-professor de história e geografia, também locutor de radio no passado, o amigo sempre alegre, de rico humor, chamado Dimas. Senti-lhe a falta. Hoje ele deve estar sendo sepultado. Caso não tenha a chance de me despedir dele, de seus restos mortais, fica aqui, nesta crônica de hoje, meus sinceros sentimentos a família Narciso.  E meus votos de conforto pela perda inestimável.

Mais abaixo, a frente da igreja matriz, as grades estavam fechadas aquela hora temprana, não foi possível entrar por alguns minutos parcos para orar contrito pelas almas boas que daqui se despediram.

E fui adiante.

Agora são seis horas e quarenta e dois minutos exatos. Creio que as padarias já abriram as portas. Mais pessoas se preparam para se despedir do trabalho. Para amanhã, quarta-feira, dar um basta na pressa do afogadilho, e descansarem num final de semana prolongado. Algumas irão a praia. Outras ao mato. Ao campo, a alguma rocinha singela, vai ser o destino de muitos. No meu caso vou a minha rocinha antes prejuizenta. Ver como anda a obra em fase final de minha casa de campo. Onde possa receber os amigos e a gente simples do lugar.

Quando passei pelo enorme cão preto, decerto abandonado em filhote, e pelo jovem dormindo ao relento, mais um corpo estendido no chão, quase certo usuário de drogas e cachaça, foi que me senti como eles. Não sei por que. Se tenho tudo para ser feliz. E não consigo.

 

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