Só clima

Como o tempo anda mudado neste fim de dois mil e dezessete.

Faz calor em demasia ao cair da tarde. Refresca, de sentir frio, no despontar das manhãs.

E chuva que é bom nada na roça seca do Tonho Trovoada. Caboclo de mãos caludas, tez tostada pelo sol, mais velho que sua carteira de identidade mostra. Verdadeiros quarenta e um anos apenas.

Quem pousasse os olhos sobre sua calva luzidia, sobre seus cabelos brancos cobrindo-lhe as têmporas, logo o chamaria de vovô. Mas o desgastado Tonho mal tinha filhos. Netos então, nem em sonhos.

Não que ele não apreciasse um rabo de saia. Muito melhor o que se esconde por dentro.

Tonho começou, em criancinha, já parrudinho menino, a fazer amor com as galinhas. Depois se enveredou com uma cabrita do pai. A seguir levou a égua pampa ao cupim. E como foi bom com a equina! Diziam, nos arrabaldes, que ambos, tanto Tonhinho, bem como a égua de garupa ancha, mais que amantes se apaixonaram. Só não deixaram filhos por pura incompatibilidade genética. Seus genes eram desconfiados um do outro. Que nem bom dia trocavam.

Mas, contrariando as previsões, a chuva tão esperada não aparecia de entre as nuvens flocos de algodão que no céu se desenhavam. No alto se via um azul profundo. Da mesma profundeza da alminha pura do menino anjinho que cedo papai do céu o levou. Provocando lágrimas de pura saudade dos que ficaram a prantear o menininho.

E a roça de milho, plantada na lua certa, não passava de um palmo. Se tanto.

Tonho orava com todo fervor pela santinha dos desata nós, sua santa de devoção. Não dormia durante a noite. Cochilava depois do almoço. Quando sonhava que o clima da terra estava mudando. Para pior.

A tal roça de milho não vingou. Parecia uma vendeta de famílias. Já que a família da roça do lado era mais aquinhoada pela fortuna. E podia irrigar a plantação, com água do riacho desviado das terras secas do pobre Tonho. E ele, embora tivesse querido muito, nada pode fazer para mudar o status quo.

Já que a rocinha de milho não passou de um monte de espiguinhas raquíticas, nada mais restou ao dono da terra se não se mudar pra cidade perto.

Foi o que Tonho fez, naquele começo de verão rabugento.

Pegou carona no velho caminhão leiteiro. Já que a frente, junto ao motorista, já estava lotado de caronas, só restou ao infeliz homem da roça um lugar espremido entre os latões de leite balouçantes. E foi tendo náuseas e vômitos até o centro da cidade. Onde apeou sem muita convicção de achar ali seu lugar ao sol.

Como não era diplomado senão na escola da vida, e como sabia da terra o experiente Tonho, procurou trabalho num lacticínio. Ali deu com latões enorme de leite na cara. E partiu em busca de outra ocupação.

Com uma enxada de três libras nas costas procurou proprietários de lotes baldios para fazer a capina. Até que ganhou uns bons trocados nessa lida dura. Mas, num destes lotes sujos, poder-se-ia dizer imundo, foi mordido por escorpião. Ficou duas semanas de molho. Dormindo ao relento. Tomando chuva. Passando fome.

Dezembro anunciou-se com suas luzes piscantes. Nunca se vira tanta gente pelas ruas. Num consumismo exagerado. Compra-se hoje. Não se sabe se se paga quando.

Neste cenário natalino Tonho se viu andando a esmo. Ficou deslumbrado com a iluminação feérica das ruas, das lojas, das falsas ofertas de liquidação.

Uma semana antes da véspera do Natal deu-lhe um súbito desejo de voltar ao seu torrão natalino. Já que na cidade não teve chance de se dar bem, por que não voltar às origens? Entre vacas, galinhas, e, melhor ainda, dar uma voltinha na égua por quem em verdade nutria uma grande paixão.

Já de malas prontas, prontinho a voltar ao lar doce lar, uma vez nas cercanias da rodoviária, já que o velho caminhão leiteiro não passaria jamais, ao caminhar, sem pressa, já que estava adiantado na hora, o ônibus só partiria de ali há uma hora inteira, passando na rua movimentada, onde sempre andava sem nada comprar, assim que, mais uma vez, contemplou a azáfama de fim de ano, as luzes da cidade a piscarem vagalúmicas, quando passou por um velho amigo, que com ele uma ou duas vezes dividiu um colchão surrado debaixo de um viaduto, apareceu, do nada, uma pessoinha infantil que a ele disse: “veja que clima festivo se mostra nas ruas”.

Tonho desiludido, sem piscar d’olhos, a ela exclamou: “é só clima, minha querida”.

Deixe uma resposta