“Aposentei-me sim, da vida que levava”…

Vida que te quero viva!

Parece um despropósito chamar a morte de vida. Morte sempre será a transição entre viver e morrer. Creio ser. O ponto final. Sem vírgulas ou reticências. Morrer, túmulo, cremação, cemitério, flores de defunto, coroas de flores, choro, sentimento, pesar, tudo rima com a morte. Da mesma forma que velório subentende-se o fechar de olhos. O ir ao além, das nuvens, do azul azul do céu? Aliás, sempre foi a mim uma interrogação saber o que nos espera além de estar aqui, escrevendo furibundamente, avidamente, para por fim a mais um livro. O décimo nono de minha autoria. Que começou descrevendo o que é viver na sarjeta, cavoucando sacos de lixo, dormindo ao relento. Como a personagem central do meu novo romance, de nome Rakel.

Hoje me passou pela cadeira de frente a minha um amigo. Dos anos antigos. Não vou declinar-lhe o nome. Não preciso.

Ele se aposentou do serviço a anos vários. Era professor universitário. Dos bons, dizem seus ex-alunos.

Há coisa de mais ou menos dez anos, se tanto, uma insidiosa doença pediu-lhe garupa. Foi na próstata a enfermidade. De natureza maligna. Maldito.

E ele foi operado da glândula doente. Foi retirada em sua quase totalidade. Ficaram apenas células comprobatórias de sua presença. Pois quem tem ou teve câncer não se pode dizer curado. Só uma vez na sepultura se pode confirmar qual foi a causa do óbito.

Este meu consultante amigo era um voraz trabalhador. Desdobrava noites pelos dias. Dava aulas todas as horas. E a noite não descansava.

Em sua face se viam olheiras profundas no canto dos olhos. Eram olheiras indícios da vida desregrada que a ele marcavam como tatuagem de fina marca.

Foram anos e anos tentando se ver livre da pertinaz enfermidade. Além da operação que nele deixou marcas, fez tratamento hormonal para suprimir a testosterona, fez radioterapia localizada, tomou remédios de custo altíssimo, e nada de o tal PSA baixar a níveis de quase zero.

Debaldes foram as tentativas de se ver livre da doença cancerosa. O câncer, que parecia sob controle, um dia voltou avassalador ao seu corpo agora esquálido.

Durante a consulta, no dia de hoje, eram sete horas quando o paciente me procurou, percebi, nas entrelinhas dos seus olhos, um ar de preocupação alarmante.

A sua doença prostática voltou com força nova.

E ele a encarou com os restos de força que ainda lhe consumiam as entranhas.

Durante a nossa longa conversa, soube em detalhes todos os passos de seu tratamento. Ele abriu a alma a mim.

Falou de sua vida pregressa. Dos seus anseios comentou brevemente. Dos seus medos fui confessor. Do interior do seu interior pouco falou.

O tempo finou da consulta. E ele saiu da linha dos meus olhos. Não sem antes me fazer confidente, em sua confissão, quase uma súplica, numa atitude de arrependimento de sua vida de trabalho árduo, foram tempos duros aqueles, dessa maneira inequívoca: “aposentei-me sim da vida que levava. A partir de agora terei vida nova. Irei curtir minha aposentadoria feliz da vida, junto a minha família, aos seres que amo tanto”.

Agorinha mesmo fui sabedor que meu consultante, ao deixar o prédio onde trabalho, de fato ouvi um ronronar de freios fungando, foi atropelado por um caminhão desembestado, vindo a se aposentar da vida definitivamente. Pra sempre, adeus.

 

 

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