“Falta pouco”

A tão sonhada aposentadoria fica cada vez mais longe do cidadão comum.

As leis que regem este direito mudam como tempo. Ora chove, de repente o sol se abre em azul.

Trabalhar por anos a fio. Não perder a hora sob a pena de se ver ao desalento. Amargar dias e dias naquela correria desatinada em busca do ganha pão. Que nem sempre satisfaz-lhe os anseios de conjugar o trabalho com o merecido lazer. Ter de enfrentar a rotina enfadonha de acordar cedo. Tomar a lotação sempre cheia nas manhãs tempranas. Tolerar o patrão sempre de cara amarrada. E os colegas invejosos de sua pontualidade britânica. Já que você é um trabalhador cumpridor dos seus deveres. Afinal, quando se atinge certa idade, ou já passado dela, ao pensar que pode enfim ficar de papo pro ar, olhando se as andorinhas fazem verão, aí vem o desgoverno que nos pensa dirigir, muda as leis alegando falência da previdência. E você tem de esperar um pouquinho mais.  Mas, infelizmente, quando é chegada a bendita hora da aposentadoria, com a qual sempre sonhou, o rendimento é de tal forma vil, que você tem de voltar à lida. O trabalho o espera de novo. Embora a saúde não seja a mesma dos velhos tempos.

É mais ou menos assim que sucedeu ao personagem do meu caso de hoje cedo.

Chico Desalento sempre foi um trabalhador exemplar. Vivia de lugar em lugar.

Ora numa fábrica de auto pecas. Como funcionário da faxina. Das sete da manhã as outras sete da noite. Ou, quando o tempo lhe dava tempo, Chico exercia a função de jardineiro num condomínio perto da empresa onde trabalhava.

Deixava a fábrica e tentava dormir. Muitas vezes sonhava com a vassoura e o esfregão. E passava a noite em claro. Pois deveria estar desperto antes das cinco. Para retomar a lida costumeira. Que para ele significava a continuação de sua rotina cansativa. Mas era isso que o mantinha vivo.

Chico tinha família. Era a esposa, doce companheira, que lhe deu dois filhos. Um casal adorável. Bons meninos, estudiosos e educados. Que só lhe davam alegria naquela sua vidinha insossa. Feita apenas de trabalho duro. Cujo salário não era nada mais que dois mínimos.

Chico vivia de aluguel. Que lhe consumia a metade do soldo. A outra metade era insuficiente para manter a família. Por esta razão Chico tinha de se fazer em dois. Mas precisava de mais dois para se manter de pé.

Nos últimos anos acumulou com o emprego na fábrica a função de guarda noturno. A jardinagem deixou de lado. A coluna gritava. Afinal o sono nunca lhe fez falta. Já que passava noites com a luz acesa. Olhos grudados no teto branco encardido. Pensando no dia seguinte.

Aos mais de sessenta o velho Chico não tinha descanso. Mal passava em casa. Mal via os filhos e a esposa dedicada. Era do trabalho ao outro. Alimentava-se mal. Comia o que lhe davam.

Beirando os setenta, com mais de trintanos de carteira assinada, Chico sonhava com a aposentadoria. Acordava cedo. Pensando naquele dia abençoado de ficar cuidando dos filhos. Tendo mais tempo para se dedicar à família. E dos netos que apareceram para afagar-lhe a barba nevada.

Mas, sempre que comparecia a agência do INSS, com a carteira de trabalho na mão, a funcionária sonolenta pedia que ele voltasse dali a dois anos.

Resignado Chico voltava. E retornava ao trabalho desesperançoso da vida.

As leis que regulam a aposentadoria jogavam contra as pretensões do velho Chico.

Ele chegara aos setenta. Com mais de trinta e cinco anos de bons serviços prestados.

Numa sexta feira, de um mês de abril, eis que o velho Chico volta a agência da previdência social. Convicto que era enfim chegada a hora de se aposentar.

Enfrenta uma fila que dava volta no quarteirão. Duas horas de espera para ouvir da moça do balcão que faltavam alguns documentos. Certidão de não sei qual, atestado médico, nada consta, declaração da fábrica que ele fora funcionário sem exemplar, e um sem número de papel que não acabava jamais.

Lá se foi Chico Desalento de volta. Um tanto quanto desanimado. Poder-se-ia dizer angustiado frente as recusas para se aposentar.

Dois anos ainda o desconsolado Chico continuou na lida. Então a saúde o havia  abandonado.

Doenças próprias da idade nele se aboletaram. Chico foi operado de próstata pelo SUS. Ficou com a urina solta. Teve de usar fraldas. Uma dor na coluna se fez presente. Mesmo assim Chico teve a aposentadoria negada. Submetido a perícia rápida que o considerou capaz.

Aos setenta e cinco, feitos naquele ano de dois mil e dezoito, em outubro aconteceriam as eleições, mais uma vez o alquebrado Chico retornou ao posto do INSS certo que daquela vez conseguiria afinal se aposentar. Finalmente.

Depois de uma longa espera, em cadeira de rodas, já que a velha coluna estropiou de vez, ao chegar a sua hora de ser atendido pela mesma funcionária sonolenta, que bocejava a cada instante, ela o interpela com mais uma negativa. Faltava ainda um papelzinho de nada. Uma certidão de incapacidade total. Um atestado de que o velho Chico estava vivo. E não morto como parecia.

Mais uma vez Chico deixou agência sem esperança de um dia se aposentar.

Ele ainda precisava trabalhar para garantir o sustento da família. Agora acrescida de mais gente.

Mesmo em cadeira de rodas. Depois de anos e anos prestando bons serviços por onde passou. Uma vida inteira de trabalho duro. Sem hora de terminar.

Quando alguém, um amigo, um aparentado, a ele pergunta quando vai se aposentar, Chico Desalento responde, com lágrimas nos olhos: “falta pouco.”

O velho Chico aposentou-se da vida antes de se aposentar.

 

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