Pra ele tanto fazia

Desde quando alcancei maior idade, lá se vão anos, incontáveis, acostumei-me a acordar cedo, com a luminosidade do sol a entrar pela minha janela, imaginando como vai ser o dia, se cinzento, claro, ensolarado ou chuviscoso, deixando o leito entregue aos seus lençóis, vou ao banheiro, tomo um banho morno, penteio o que resta dos meus cabelos, escovo os dentes, assento-me ao trono, e sofismo qual assunto irei escrever, naquela manhã que de pouco se inicia.

Por vezes a inspiração não chega. Tenho de caminhar um cadinho, olhar atento o que meus olhos enxergam, ah, se não fosse a minha visão apurada, não sei o que seria de mim.

Felizmente nasci com todos os sentidos em dia. Sinto o cheiro adocicado daquele doce de leite feito na noite passada. Ouço o estalido da maçaneta da porta quando o trinco se fecha. Pressinto, graças a minha sensibilidade aguçada, o sofrimento daquela avezinha que perdeu o filhotinho na sua primeira tentativa de deixar o ninho. Não deixo de me extasiar com a presença do arco íris depois da chuva que recém caiu.

Ah!, Se por acaso me faltasse a visão… Não sei se iria sobreviver na escuridão.

Como iria fazer para identicar as teclas do computador. Tatearia sem saber saborear o que meus dedos escreveriam. Creio que não teria sentido a minha vida. Pois sempre fui acostumado a identificar entre o claro e o escuro. Saber o que dizem as palavras. Caminhar sem tropeçar nas pedras do meu caminho. Olhar a face da minha mãezinha. Que se foi há tempos atrás.

Não saberia viver sem identificar de qual cor o céu se abriu. Da mesma maneira não gostaria de ser privado das cores das ondas do mar. Ou até mesmo de qual matiz de cor foi tinto os olhos daquela menina pela qual me apaixonei, quando criança ainda, sem saber deveras o que fosse amor.

Felizmente nem tudo é assim. Tem gente que nasce cego e enxerga melhor que os dotados de visão.

São muitos exemplos que poderia declinar. Entre eles um rapaz, vizinho de roça, com quem sempre me encontro quando passo por sua morada.

Claudio, amigo de longa data, perdeu a visão desde quando nascido. Acostumado a escuridão nunca se rebelou contra a amaurose. Vive feliz, distribuindo gracejos para os passantes, quando a gente passa por ele.

Nunca o percebi de mau humor. Apesar de sua cegueira congênita ele consegue caminhar com desenvoltura. Conhece como poucos cada curva do caminho. Identifica as pessoas pela voz.

E assusta-se ao ver carros em movimento.

Naquela tarde chuvosa, céu cinzento, ao passar por ele, parei um cadinho.

“Claudio. Pra onde vai? Quer carona para dar uma volta. Quem sabe vamos a cidade para ver as mocinhas da sua amada Ijaci? Tem namorada? E como vai o trabalho”?

Claudio estendeu-me a mão. Disse-me que tudo ia no melhor que gostaria. A chuva tem caído intensamente. Não tenho a menor intenção de mudar o tempo. A vida sempre me sorri. Se bem que não consigo identificar o brilho do sol não faço questão. A escuridão não me incomoda. Aprendi a conviver com a falta de luz. Noites e dias pra mim não tem sentido. Sinto sim o frescor da chuva. A aragem do vento pressinto-a nos meus cabelos. Todos me querem bem. Trabalho de sol ao deitar da lua. Pra mim tanto faz. Se nasce um dia escuro parece que a noite ainda não terminou. Se faz sol sinto na pele o seu calor.

Acostumei-me a falta de visão. Percebo as cores pelo tato. Sei perfeitamente identificar entre o amarelo e o vermelho. Aprendi graças aos meus sentidos apurados. Ouço bem melhor do que você.

Despedi-me do amigo Claudio pensando melhor. A gente não precisa enxergar pra ser feliz.

Pra ele tanto faz. Como tanto fazia. Não sei se aprenderia a viver assim.

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