“O Senhor tá no céu”

Esta deferência aos mais velhos pra mim tem cheiro de subserviência.

Quando me chamam de velho digo na hora: “prefiro ser chamado de tio”.

Não considero falta de respeito ser tratado por você. Não só me envaidece como me faz sentir jovem.

Quantas e quantas vezes, quando estacionava o carro num lugar difícil de parar, vêm alguém, todo gentil, e pede, encarecidamente: “doutor, posso vigiar seu carro? Aqui é um lugar perigoso. E o senhor corre o risco de algum sem vergonha arranhar seu automóvel.”

Como se ele não fizesse parte desta mesma sem-vergonhice que se alastra país afora. Na hora não faço objeção ao seu pedido. Deixo alguns trocados no bolso. A fim de evitar mal pior.

O tal de doutor a que ele se refere é uma titulação enganosa. Pois considero os verdadeiros doutores aqueles pós- graduados, depois de passarem pelo mestrado, aí sim, após anos e anos de estudos, o título honorifico de doutor pode ser dado.

De doutores o mundo está pelas orelhas. Mais da metade deles são falsificados como notas de dois mil reais.

Meu saudoso pai, há tempos atrás, quando alguém o chamava de doutor não fazia a menor questão. Simplesmente agradecia, penhoradamente. E contradizia ao interlocutor que por ventura estudou até completar o segundo grau. Embora depois de aposentado se gradou em advocacia. Tendo exercido esta honrosa profissão por poucos anos apenas. Já que a enfermidade logo o jogou ao leito. Tendo falecido sem ter tido o prazer de ver seu primeiro filho tornar-se escritor.

Um dia, não sei quando foi, ou se em verdade aconteceu, um vizinho de roça, pessoinha pura como água da mina, Seu Joaquim, de sobrenome esquisito, era chamado de Joaquim Tampo de Caixão, procurou-me na minha casinha, vizinha a dele, com um pedido, que se por acaso pudesse ser atendido, seria grato por todo o resto de sua vidinha simplesinha.

“Doutor Paulo. O senhor poderia retirar um berne gorducho que se alojou nas minhas partes baixas? O tal teima em não sair. E de vez em quando mostra a carinha sem-vergonha, tentando me dizer que daqui não saio. E daqui ninguém me tira”.

Não pude recusar ao seu pedido. Marcamos para a próxima segunda-feira. Já que naquele dia era domingo.

E ele chegou pontualmente às oito horas. Vindo de carona no caminhão leiteiro. Pois a condução que o traria atrasou-se naquele dia.

Levei o Seu Joaquim à sala de exame. Não foi preciso declinar-lhe o sobrenome.

De fato um berne obeso, rechonchudo, estava semi escondido pertinho da sua bolsa escrotal.

Um caroço inflamado exalava um odor nauseabundo.

Um buraquinho de nada era por onde o tal berne respirava.

Nem foi preciso anestesia. Aumentei o tamanho do tal orifício e dali emergiu o berne graúdo.

Dei de presente ao meu amigo aquilo que o incomodava.

Nem sei se foi cobrada a consulta. “Amigos são pra estas coisas”. Disse-lhe com um aperto de mão.

Na nossa despedida recebi, como presente, um saco enorme cheinho de bananas maduras e duas dúzias de ovos caipiras.

Foi quando dele escutei. Naquela voz rouca entremeada de emoção.

“O Senhor fez por mim o que nunca recebi de amigo nenhum. Fico eternamente grato. Espero retribuir a sua amizade antes que tampem a boca do meu caixão”.

Um ano depois meu amigo Joaquim veio a falecer. Ainda me lembro das palavras que proferi naquele dia quando o recebi aqui, neste mesmo consultório: “o Senhor está no céu”.

De fato meu amigo Joaquim hoje faz companhia ao Senhor Deus.

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