O dia em que Zé Bodoque enregelou

O céu se mostrava amarelo. O azul tremia de frio.

Tudo ao derredor embranquecia.

Uma camada de gelo fino cobria a pastaria. Geou a noite passada.

O gado não apareceu naquela madrugada tinta de branco.

Zé, apelidado de Bodoque por caçar passarinhos a estilingue, quando criança, já bem rodado em anos, acordou naquela cama macia, coberto até as orelhas de abano, daí a sua parecença com o elefantinho Dumbo, sem querer deixar o leito. Mas tinha de ordenhar a vacada. E, depois da primeira tarefa do dia encher aqueles cochos enormes de cana picada, misturada a silagem de milho, além de tratar da porcada grunhenta, lá embaixo, pertinho do corregozinho onde costumava pescar lambarizinhos de rabo vermelho, fritá-los na gordura feita de banha de porco, a hora do almoço, que ele mesmo preparava, no velho fogão a lenha, cujas achas de lenha fumegantes ajudavam a esquentar o ambiente.

Naquele meado de maio, o inverno ainda mal começado, a temperatura oscilava entre zero graus e um cadinho mais.

Fazia um frio de fazer pinguim tiritar as penas brancas e pretinhas como urubu mergulhado em piche.

“Ai que vontade de continuar na cama”.  Dizia o pobre Zé aos seus botões.

Mas não era ele quem mandava naquele pedaço de chão. Era um mero empregado. Retireiro nas horas vagas. Carpidor de mato nas outras que sobravam. Tratador de porcos quando sobrava tempo. E o salário?

Recebia, ao final do mês, pouco mais que o mínimo. Por sorte Zé Bodoque era divorciado. Não tiveram filhos. Era ele e ele só. Naquela fazenda perdida nos cafundós onde Judas perdeu as botinas.

Para chegar naquele estrupício de fazenda era preciso pegar duas ou mais conduções. E o ônibus velho, uma jardineira de pneus carecas, só passava por ali uma vezinha por semana. Isso quando não enguiçava. Para chegar à cidade, que distava mais de duas léguas, era preciso contar com a boa vontade do caminhão leiteiro. Que nas águas atolava no barro grudento. E no período da seca exalava uma poeira brancacenta, que não só entupia as narinas como da mesma forma causava uma gripe que jogava na cama os menos favorecidos.

Naquela manhã de maio, quase dia vinte, Zé Bodoque acordou sem ter dormido.

Amanheceu febril. Sentindo uma dor no corpo de fazer dó. De nada adiantou tomar uma aspirina vencida. Um comprimido que achou na gaveta de cabeceira. Com um sabor esquisito.

O resto do dia Zé passou de mal a pior.

Quando o relógio apitou dez para as seis, da tarde, com aquele friozão de fazer capote se transformar em uma camada de gelo em pó, o velho Zé, não tendo a quem recorrer, decidiu implorar socorro a uma velhinha que morava numa casinha pequenina, pertinho da cerca que dividia os pastos.

Ela era considerada milagreira. Quase uma bruxa sem vassoura.

Aportou naquela tapera aos trancos e barrancos. Tossia como uma vaca desdentada. Tiritava trincando os dentes que não tinha.

Quando a velha o viu pensou que o pobre Zé não passaria daquele dia.

Aplicou-lhe uma saraivada de rezas e benzeção. Uma mistureba de canjibrina, pinga ruim, junto a uma colherada de açafrão com capim, foi-lhe entornada goela abaixo.

Zé não morreu ali mesmo por pura sorte. Ainda não lhe era chegada a hora.

Assim que chegou a casa, já tarde da madrugada, com um frio mais gelado de congelador de geladeira, o infeliz quase teve um troço.

Passou o resto da noite enrolado num cachecol de lã felpuda.

Foi quando encontrei o que restou do pobre Zé. Um bonequinho de neve branquinha. Meio que enterrado no seu próprio quintal.

Dizem, nos arrabaldes, que o infeliz bodoquento nem direito a sepultamento teve.

Transformou-se numa estátua de gelo. Que até hoje é venerada. Como se fosse um anjo caído do céu. Durante uma tempestade de neve.

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