Falta-me tudo

Hoje amanheceu um friozinho gostoso de desejar não sair da cama.

Mas quem disse que assim o fiz.

Mais tarde que o costume aqui cheguei um cadinho antes das seis.

O céu já estava azul. O sol, já desperto, ajeitava o seu lençol de nuvens para tomar café com as estrelas.

Não me falta nada para acordar a mesma hora costumeira. A cama me enxota. A água fria da pia me faz acordar de vez. Aqui tomo meu cafezinho expresso. Não sem antes alimentar os meus peixinhos aquarianos sempre famintos.

Sinto-me a cada dia revigorado para começar nova semana.  Cada segunda feira me intima a dizer a ela: “seja bem vinda”.

Nada me tem faltado nesses meus setenta cinco anos. A cada ano que passa só tenho a agradecer.

Tive uma infância sadia. Brinquei na hora certa. Fui à escola no tempo certo. Não fui mau aluno. Nem dos piores nem o melhor. Razoável, diriam meus professores.

Nada me tem faltado. Graças aos meus pais sou bem aquinhoado pela sorte. Nada me faltou na juventude. Na fase adulta tenho a dizer que fui feliz ao escolher a outra família que ajudei a formar. Meus filhos não me decepcionaram. Espero dizer o mesmo dos meus netinhos.

Não sei o que me reserva o futuro. O presente tem sido graciosamente belo. Como esse dia que recém amanheceu. Nada me tem faltado. Sou bem agraciado em inspiração. Cuido bem da minha saúde. Felizmente as enfermidades em mim não tem parança. Uma gripinha aqui. Uma dorzinha acolá. Não tem sido tratadas com medicamentos. Simplesmente espero a hora de elas me deixarem em paz.

Já meu amigo de tempos idos. Que já não mora mais por aqui, felizmente. Era um sujeito sempre queixoso da vida. Embora poucos motivos tivesse para se lamuriar.

Januário era um pé no saco. Um esvazia banco evitado por quem do seu lado assentava.

Não havia bons dias para ele. Sempre alguma coisa o atormentava. Ora era o preço da comida. Outra hora era o salário que lhe pagavam.  Mas Januário não era merecedor daquilo que ganhava. Não tinha formação profissional. Mal passou do segundo grau. Gazeteava aulas quando mais jovenzinho. Na escola era faltoso, com as notas do boletim sempre em vermelho.

Era um verdadeiro prosa ruim.  Um reclamão de tudo e de todos. Uma companhia nada agradável.

Naquela manhã, de um sol lindo como o de hoje, nos encontramos na esquina.

Como não tinha pressa acabamos trocando dúzia e meia de palavras. Sabia de seu costume de reclamar de tudo.  Mas lhe dei ouvidos.

“Olha meu amigo, nessa manhã acordei de péssimo humor. Não troquei de roupa. Dormi pensando no que fazer nesse dia. Faltou água no meu banheiro. Não tive como tomar banho no chuveiro, pois água não saia. Falta sempre grana para comprar qualquer coisa. Mas a mim falta disposição para procurar serviço. Quando saí de casa não tive como pagar o aluguel. Já vencido desde sete meses passados. Quando voltei a casa tinha sido despejado. Faltou-me de novo coragem para procurar novo emprego. Acabei tendo de morar na rua. Foi quando me deu vontade de recorrer a nossa velha amizade. Quem sabe se eu posso morar na sua casa? Você tem se mostrado sempre um bom amigo. Agora, nessa hora de aflição, quando me falta tudo. Quem sabe você pode me abrigar”?

Ainda bem que me lembrei de quem era ele. O tal Januário nunca foi flor que se cheire. Um sujeito para quem sempre lhe faltava tudo. Mas nunca correu atrás de nadica de nada. Ele sempre se servia da boa vontade de terceiros. Mas como pra mim nada me tem faltado. Despedi-me do amigo da onça dizendo a ele: “espera outra hora. Agora vou estar em falta com você. Procura serviço. Quem sabe depois de empregado nada vai lhe faltar”.

Januário enfiou a viola no saco e se escafedeu. Quem souber noticias dele não precisa me dar.

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