Em certa altura de nossa vida pouco temos a oferecer.
Já demos muito. Já oferecemos tudo aquilo que podíamos.
Trabalhamos uma vida inteira quase sem descansar. Começamos cedo. Acordamos ao nascer do dia. Tomamos um banho morno para espantar o sono. Sonhamos muito e agora não sonhamos mais.
O primeiro oficio foi numa oficina de lanternagem. Quantos carros já desentortei. Quantas latas velhas já as pus novinhas em folha.
Eu tinha apenas dezoito anos. Na maioridade me casei. Tive uma penca de filhos. Que hoje nem se lembram do seu pai velhinho. E me deixaram uma casa de idosos. Sem ao menos me visitarem aos domingos.
Fui colecionando anos entremeados de desenganos. Perdi a minha amada esposa aos menos de trinta. Nunca mais me casei.
Vivi, até nos dias de hoje, numa solidão desgraciosa. Numa casa velha carcomida por cupins e traças. Que foi vendida por meus filhos. E eu nunca fui chamado a participar da decisão daquela venda. Puseram-me venda dos olhos para não me verem chorar de desencanto.
Agora nada mais me resta. A não ser esperar que me convoquem ao outro mundo. Bem sei que minha hora vai chegar. E estarei preparado para receber a extrema-unção?
Ainda me sinto apto a enfrentar a vida como ela se apresenta. Com as cores do outono e o branco do inverno em pleno frio da madrugada.
Agora, nessa hora madrugada, acordei sem ter dormido. Na minha cama enfrento o frio da noite escura. O secume dos dias sem chuva. Dou amor aos que não tem. Não viro a cara aos que precisam como meus filhos fizeram a mim.
Já dei tudo que podia. Já me desdobrei em mais de cem sendo apenas um.
Já tomei decisões certas ou erradas, mas não me omiti. Fiz-me de duro quando por dentro amolecia em lágrimas. Abracei tantos e muitos não retribuíram ao meu gesto de carinho.
Dou-me por satisfeito não pelas conquistas materiais. Vivo numa singeleza espartana. Desapeguei-me de grandes somas de dinheiro. Mas nunca irei me desapegar de verdadeiras amizades.
Já ofereci tudo que podia. Já dependurei as chuteiras na trave do gol adversário. Embora nunca tenha jogado futebol me sinto vitorioso. Nas partidas da vida que ainda continua antes do apito final do juiz.
Já dei tudo que podia. Mas como nada tenho, nada tenho a oferecer mais.
Já dei tudo de mim. Já dei amor. Já tentei consolar a dor de outrem sem me preocupar com meu próprio sofrer.
Já me dei por inteiro. Agora, feito em fatias, olhos cerrados, pele fria, sem respirar, não sei se irão aceitar meus restos mortais.
Já me dei por vencido. Não mais me sinto vivo. Embora meu coração ainda pulse. Meus olhos se mantenham abertos. Ainda respire. Não tenho a pretensão de inspirar a mais ninguém com meus escritos diuturnos. Com minha sensibilidade maiúscula. Com meu silêncio que fala pelos meus textos.
Já dei tudo que podia. Já me dei aos vinte anos. Continuei a me dar aos trinta. Dei-me muito na infância. E persisto em me doar até no presente momento. Não sei até quando irei me dar.
Mas não pensem que já dei tudo que podia. Nos meus setenta e cinco tenho ainda muita lenha pra queimar.