A espera da esperança

João Ermenegildo da Silva, apelidado por Zé da Mula (deveria ser João da Mula), por ter um xodó antigo por uma cavalgadura da qual nunca se separou inté o dia do seu passamento, dizem que ele foi ao fundo do poço, tentou dar cabo da vidinha jovem, à época de então, depois de acompanhar, lacrimejante todo o cortejo errante ao cemitério da pequena comunidade, distrito de Ijaci, nomeada de Contendas, segurando o enorme caixão, apenas em companhia dele mesmo (na verdade o defunto da mula foi na carreta de um trator), tomado por empréstimo a um vizinho de nome Dorival, só não morreu enforcado por ter sido salvo por um compadre amigo, de nome Tiãozinho do Aristeu, marido da Dona Vanda, que, no momento exato que o laço começou o aperto apareceu, de uma moita de capim, com o podão em punho, deu um golpe imediato na corda grossa, que resultou na queda do galho da amoreira velhusca de onde pendia o fiapo de vida que ainda restava ao infeliz sofredor.

A mula do Zé tinha o nome de Esperança.

Era um equídeo enorme. Claro, de pelo ralo, um tanto cinzento como nuvem por chegar a chuva. O que a Esperança exibia de melhor era a marcha repicada, a brandura na lida, mansa como sói ela era. Dizem, como fala a boa gente da roça, que foi o Zé que a desvirginou, à sombra de um pé de caqui, montado num cupim morto, depois com ela se casou, não tiveram filhos asnos, embora o Zé da Mula fosse mais burro que o compadre Seu Mané, que vivia com a muié, numa rocinha perto. Ainda me lembro de quando fiz uma visita ao casal. Fui montado no podrinho Theo, meu cavalinho que ficou cego depois de uma topada no olho esquerdo, mas não prejudicou sua enorme capacidade de marchar como soldados num batalhão, perfilados na parada de Sete de Setembro.

Assim que apeei na tronqueira precisando trocar o mourão, a dona do Seu Mané, simpaticíssima nos seus óculos de lentes qual fundo de garrafa, boa de prosa, me recebeu, depois da saudação que de mim partiu, assim: “Tudo bem com a senhora”?

“Fora a veice e as doença, tudo mais ou menos”.

Voltando a mula manca, mentira, a mula Esperança, do Zé dela mesma, nunca mancou, mesmo quando torceu a pata direita num mata-burro assassino, o mesmo onde morreu uma égua minha, a mãe da Cigana, progenitora do potrinho Theo, que agora está prenha de mais um equino, tomara seja feminha, quando ela morreu o Zé ficou solteiro.

Não se casou mais. Nem quando uma linda rapariga, figura em extinção nos ares da roça, bonita como o canto da cotovia, apareceu-lhe na porta da casinha tosca, à caça, não de capivara, e sim de um teto onde esconder a formosura. Era um “capim novo” de dar água na boca da vaca esfomeada. Mesmo assim o pobre Zé a enxotou de casa, sob a alegação que era impotente do cano da espingarda de dois canos, mais uma mentirinha deslavada, das muitas que repetia.

Todas as noites rezava em intenção da alma da mula morta que por ali vagava nas noites de lua nova.

Numa manhã chuviscosa, quando acabara de plantar outra roça de milho, a primeira foi um sucesso de espigas, era quatro em cada pé, da altura de um edifício de dez andares, do mesmo porte do que o meu, onde sou médico e escritor nas horas baldias, Zé da Mula, cujo nome da mula foi trocado por Esperança, coisa que não faltava ao esperançoso Zé, sujeito estóico e resignado, no dia seguinte a planta da safrinha, o céu se mostrava azul demais.

Não preciso escrever como a chuva é bem vinda nos ares campesinos. Apenas os cidadãos da cidade, que adoram asfalto efervescente, ao sabor do calor dos trópicos, renegam os pingos d’água caídos do alto. Os nascidos e crescidos, eu não sou nascido na roça, não tenho o umbigo enterrado num matinho qualquer, mas o coração ali descansa, quando, nos fins de semana, para ali me desloco, a fim de renovar a esperança, não na mula morta, e sim no melhor destino do lindo país onde vivo, em sobressalto com a corrupção aqui entranhada nalma poluída da nação.

Acontece que a tão ansiada chuva não apareceu de entre as nuvens brancas, da cor do algodão.

Uma semana se despediu. Duas, três. A roça de milho, da segunda planta, parecia que não iria vingar. Ela precisava de chuva. Assim como o Zé carecia de ter esperança, não a mula, já que ela, a renomeada Esperança, havia partido deste mundo para um lugar melhor.

Numa noite linda, céu pontilhado de estrelas, Zé da Mula teve um sonho pueril.

Sonhou que a mula, rebatizada por Esperança, a mesma desvirginada num matinho fresco, um cupim morto foi testemunha do ocorrido, havia ressurgido dos mortos, não era uma alma penada, pois Esperança mula não era galinha, era fiel ao dono dela. E, no mesmo sonho, colorido de azul anilina clarinha como clara de ovo choco, caiu uma chuva mansa, que salvou da morte a safrinha recém plantada.

Zé da Mula Esperança acordou todo molhado. Não de chuva, havia mijado na cama. Era xixi mesmo, o líquido fedorento que molhou o leito todo.

Saiu de casa, ainda madrugada alta, menos de duas horas da manhã.

Do céu caíram dez pingos de chuva. Que se acompanharam de uma chuvadonha de dar água na boca mesmo aos olhos desapetrechados de poesia dos urbanos.

Talvez vocês, leitores, pensem que o desfecho da minha crônica, ou seria um conto?, seja fruto de mais um devaneio meu.

O fato inconteste, juro ser verdade, a safrinha do Zé da mula foi salva da inanição, agora chamado de Zé da Mula Esperança, nunca a perdeu. A esperança em dias melhores, como eu…

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