Ao desabrigo

Logo que a gente emerge das entranhas da mãe, olhinhos fechados, mãozinhas crispadas, o primeiro choro é prenúncio de vida, mal sabemos nós que outros choros virão, de dor, de alegria, de saudade e nostalgia, de desalento e sofrimento, somos despejados daquele ambiente perfeito, repleto de calor, de alimento, a salvo dos desatinos que nos esperam do lado de fora, o pequeno jovenzinho, ainda por entender o nascimento, mal tem olhos para a mãe, que o pega nos braços, ainda sujinho de coisas delas, um pedaço, um naco, fruto de amor, de sexo, o bebê recém nascido pela primeira vez enfrenta a incerteza do desabrigo.

A partir de aí uma longa estrada o aguarda. Na raça humana ainda se tem o conceito de que filho não caminha solitário pelos mares por vezes tempestuosos da casa terra onde vai morar. Antes o lar, o achego era a cavidade uterina, mistura de líquido e alimento, morada esta que, à hora do parto é violada, incisada, por onde, na cesariana, vai sair o concepto, antes feto, agora uma criança que ainda mora em mim, embora não mais criança seja, apesar dos mais de sessenta e tantos anos de enganos e desenganos, de frustrações e abandonos, tudo isso longe do abraço protetor da minha mãe.

Entre os animais a história é outra. O cavalinho recém nascido, o bezerrinho no momento parido, o beijaflorzinho emerso do ovo, todos os filhotes passam pouco tempo sob a manta protetora dos pais. Há dois dias percebi, nos fundos da minha casa, na varanda pouco frequentada, de um ninho de beija-flor, apenas e tão somente passarinhos dependentes dos pais, assim que me fiz presente, cautelosamente para não assustá-los, os dois filhotes ensaiaram com asas incertas o primeiro vôo solo. Um deles, de mais iniciativa, voou para bem perto. Assentou as asas frágeis numa moita de capim escuro. O irmão, menos preparado a enfrentar a vida longe dos pais, bateu a cabecinha no muro. Tentei ir atrás dos dois beijaflorzinhos. Foi mais um ledo engano meu. Eles desapareceram da minha visão. Agora não sei onde eles estão. Por certo os dois tentarão reiniciar um novo ciclo. Formar uma nova família de beija-flores, a fêmea botar ovinhos, e dali saírem dois novos beijaflorzinhos, que, tomara aproveitem o agora ninho vazio, que vai continuar a morar na folha da ráfia do meu jardim dos fundos. A salvo das intempéries da vida cá fora.

Na raça humana, que por vezes se mostra desumana, a questão de abrigo e desabrigo se insinua em nosso cotidiano mutante.

Talvez devido à crise que mostra os dentes raivosos, ao desemprego preocupante, a falta de perspectiva de crescimento que o país atravessa, cada vez mais observo, nas minhas andanças pela cidade, pessoas, das mais díspares idades, dormindo debaixo das marquises, tentando se proteger das alterações climáticas, as águas de março tintam o verão de verde, o frio ainda não começou.

Hoje mesmo, antes, bem antes, das sete da manhã, quase ao chegar ao prédio onde ainda exerço a medicina, divido o meu tempo entre duas caras, a de urologista e escritor, percebi, sob uma manta leve, um corpo estendido no chão duro de um passeio.

Era um desabrigado aparentemente a salvo de uma chuva mansa. Caso fosse uma tempestade, com certeza o sem teto estaria protegido das gotas miúdas, no caso da chuvadonha imensa o pobre mendigo tomaria um banho, coisa que não fazia não se sabe quando.

Não tive a coragem de a ele acordar. Para que? Era ainda cedo. E o pobre andarilho, desconhecia de onde veio, não tinha muita coisa a fazer. Mais tarde iria se levantar, lavar o rosto amanhecido nalguma torneira de uma praça fronteiriça, tomar café numa padaria, caso uma alma piedosa lhe emprestasse algumas pratinhas, miúdas, não o suficiente para um desjejum substancial como o meu, depois esmolar em pontos vários da cidade, fumar um baseado, encraquisar-se num banco de praça qualquer, e, quem sabe afanar, de alguma loja desavisada uma roupa melhor que os trajes andrajosos que ganhou de presente na última cidade por onde passou.

O fato que me marcou profundamente, mesmo sabedor que aquele desabrigado, pedinte, ainda jovem, morador da rua da amargura, amargurada pessoa, não estava só no seu caminho errante, foi descobrir, em tantas e tantas cidades espalhadas pelo meu país, tão rico, e tão pobre, tantos casos como o dele.

Que pena, o ninho do beija-flor, de onde ontem avoaram os dois filhotinhos, novinhos, agora vazio, não possa abrigar apenas um desabrigado. Se pudesse, e na minha intenção louvável coubesse, abrigaria a todos eles, não debaixo de marquises, ao relento, sob a fúria da tempestade, ou sob o forte sorriso do sol do meio dia.

Eu os abrigaria a todos, como um dia me abrigou a cavidade fecunda do útero de minha mãe, nalgum lugar longe, muito distante, onde o fosso social não fosse tão fundo, como aqui, no meu país continental.

 

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