Desespero

João, que bem poderia ser Sebastião, Antônio, ou outro nome qualquer, dos muitos infelizes que vagabundeiam sem rumo pelas ruas do nosso malsinado país, de repente se viu no olho do abandono, mais um na fila enorme do desemprego, a espera de outra chance de ter a carteira rabiscada, mais uma das muitas assinaturas ininteligíveis borradas naquela página mal amada, de uma carteira que precisava ser renovada, como a gente carece de ver outros ares nos céus do nosso amado e desencontrado brasil. Não se assustem com o brasil em minúsculo. Assim mesmo que o vejo de tempos pra cá, irremediavelmente perdido, num cenário igual nunca visto.

Joãozinho nasceu nanico. Apgar bem abaixo do sabidamente esperado.

Fraquinho, medindo menos de alguns centímetros. Fração da metade do que dizem as estatísticas da desnutrição, da falta de uma gestação bem cuidada. Já que a mãe, uma rapariga que se deitava com todos que a ela ofereciam abrigo, uma notinha miúda servia, e ela se despia ali mesmo, naquele colchonete infecto, num passeio ao relento.

Como no caso de uma cadela vira-lata no cio não se conhecia quem fora o pai de mesmos genes do pobre Joãozinho. Tanto poderia ser o Tião Vigarista, um notório consumidor de drogas pesadas, quanto o Dinho Mal Visto, que um dia, ao ter o visto negado no consulado, ao tentar ir aos Estados Unidos, por falta de trabalho em sua cidade, no norte de Minas, acabou no xilindró, amargando cadeia por um crime que não foi de sua autoria. Mas, como não tinha advogado, não era colarinho engomado e branquinho, foi condenado a dez anos de reclusão, ao lado de facínoras de verdade. Entre eles um que havia dado cabo de dez mulheres puras, antes que ele a elas desvirginou.

Joãozinho veio ao mundo, sem poder dizer não, numa sexta-feira treze.

Naquela noite sem lua faltou luz no poste que iluminava por cima da calçada onde o pobre bebê não chorou. Antes que fosse jogado na lata de lixo da esquina eis que surge uma alma boa que o salvou da inanição. E do bico dos urubus.

Dona Raimunda pensou que aquilo seria mais uma trouxinha qualquer. Um embrulho, um saco de pão ali esquecido por um madrugão. Mas dentro do saco de pano sujo, ainda com restos de placenta grudenta, havia uma almazinha abandonada, uma criança desnutrida, fruto de um ato sexual que não se soube quem eram os autores do infausto acontecido, já que apenas a mãe era coautora do delito.

A senhora descasada de muitos anos tomou a si mesma a incumbência de ser a mãe e o pai da criança nascida na rua da amargura. Por azar do menino, o nosso pequeno Joãozinho, a mãe postiça veio a se despedir da vida anos poucos depois da adoção ser efetivada, num cartório de verdade verdadeira.

E, mais uma vez, o jovem Joãozinho voltou a ser o irresponsável por ele mesmo.

Foi assim que voltou à rua. Quase na mesma esquina da praça onde nasceu.

Ali morava uma fonte de águas dançarinas, lago sujo e cheio de larvas de pernilongos. Logo convertida numa banheira onde tomavam banho todos os sábados, dias santos e feriados, escovavam o que restou dos dentes, um mil e um, mais faltavam os molares do que os de trás, todos cariados.

Aos quinze foi levado a um centro de menores infratores. Joãozinho Fracote, como ficou conhecido na sua turminha barra pesada, foi pego levando drogas, buchas de maconha e enroladinhos de cocaína, a um bairro distante.

Ali ficou a contragosto, levando a borduna do guarda, apanhando quase igual ao saco de porrada dependurado no teto da academia de lutas marciais.

Aos vinte e um, maior de idade, menor na altura, foi posto de fora daqueles muros altos, com vista para lugar algum.

Por mais uma vez a sorte parecia a ele sorrir.

Conseguiu, por obra e graça de uma senhora da igreja, que dele se apiedou, ser empacotador de um supermercado que ainda vendia na caderneta, fiado, a muitos compradores conhecidos.

Mas pouco durou a nova vida de trabalhador de carteira assinada. O comércio de bairro, de tanto levar calote da freguesia, veio à bancarrota rota.

Era uma sexta-feira, de novo o número treze não lhe fugiu ao esquecimento,  com o pequeno mercadinho de portas fechadas, mais uma vez o pobre João se viu na rua da amargura profunda. Desta vez viciado em não apenas cigarro comum, como em outras turbulências reconhecidamente funestas.

Aos mais de trinta, manquitola de uma das pernas, por culpa de uma queda de moto roubada, decidiu mudar de vida. Queria se reabilitar, conquistar família, ter filhos, mais de um.

Com um emprego novo, promissor, com um diploma de contador nas mãos finas, faltava-lhe um dedo, igual ao caso de um ex-presidente, o qual infelizmente ameaça voltar ao poder, cruz credo, Joãozinho de novo sonhou alto. Da altura das nuvens brancas que não davam sinal de chuva, naquele começo de setembro seco.

Já casado, aliás, amigado, com uma mocinha da qual nunca se ouviu notícias ruins, era boa a moçoila casadoira, com um filho a criar, era a sua cara deslavada, com emprego fixo, num reconhecido escritório de contabilidade de boa fama, eis que tudo contribuía para a felicidade plena do ex-infeliz Joãozinho da rua.

Mas, como nem tudo são flores na arquibancada dos desamores, um dia a coisa mudou, pra muito pior.

O escritório contábil, alegando contensão de gastos, achou por melhor despedir o mais novo da turma de apenas cinco. Sabem quem teve o bilhete vermelho? Adivinhem! O infeliz Joãozinho. Já casado, de papel passado, com três boquinhas famintas a alimentar.

Hoje, véspera de feriado, sete de setembro aparece amanhã, quinta-feira, ao descer a rua, da minha casa a onde estou, lugar onde escrevo e exerço a medicina urológica, antes da esquina do hospital onde ainda trabalho, deparei-me com uma cena inusitada.

Um jovem adulto, maltrapilho e olhos assustadiços, mais parecendo um fantasma anemiado, esmolava no cruzamento das duas ruas largas.

Não tive como não parar meu ímpeto. Nem minha pessoa.

Ao tentar entabular conversação com ele, ao vê-lo naquele estado deplorável, antes que pudesse evitar mal pior, o jovem adulto, que parecia ter mais idade que a vida a ele emprestava, de repente pulou na frente de um ônibus em movimento. Mal sobrando sobras de osso esmagado em meio a uma poça de sangue rubro, no meio do asfalto frio.

Assim que o carro fúnebre perto dele estacionou, ao ver seus olhos ainda abertos, deles não exalando vida, arregalados, o pobre suicida deixou-me nas lembranças o ar desesperado do desespero.

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