Ontem de noite choveu para um mês inteiro. Fortes chuvas, rajadas de vento, riscos luminosos voavam pelo céu cinzento, caindo à terra sob um ribombar estrondoso.
Onde moro, dada a queda de árvores copadas, que conferem ao lugar onde moro um ar fresco onde pássaros se aninham, ali criam família, maritacas grasnam furibundas. Um casal daqueles pássaros verdes e ruidosos no telhado de uma casa nunca antes ocupadas mostra a carantonha sonolenta perto da janela do meu banheiro. É ali que elas moram. E onde chocam os filhotes. Que um dia deixarão o ninho como aconteceu a mim mesmo e tantos outros por aí afora.
Aí começa o conto, a triste história, de um meninozinho nascido e engordado, se bem cadinho, num lugar ermo e distante, nos arrabaldes de um lugarejo, nem vila era, onde quem ali passasse, por um descuido, tinha enormes dificuldades de encontrar o caminho de volta. Era em verdade o final da linha, de um trem de ferro descarrilhado, tal e qual a velha Maria Fumaça com seu chiuiiii de tantas saudades encantadoras.
Quinzinho, era este mesmo seu nome, menino pobre, de pais mais ainda, irmão de dois iguaizinhos, um morreu durante o parto, não teve quem ajudasse a pobre mãe, que, por sorte dela, podem pensar que sorte seria o antônimo do que gostaria de escrever, pois ela veio a falecer assim que expeliu o concepto, e foi enterrada ali mesmo, no conforto de umas raízes da velha amoreira, que no dia do seu féretro foi banida da face da terra incendiada por um raio imenso que caiu logo por cima da carunchada árvore tida como de bom cerne. Logo feito cinzas, assim como o cadáver recém-sepulto da mãe do menino Quinzinho.
Na região parcamente habitada corre um boato no qual acredito. Dizem as bocas miúdas que até hoje, nas noites quando a lua se esconde em seu leito nupcial, avista-se um vulto de mulher, tostada até os ossos numa tinta negra da corzinha quase igual a quando um urubu descuidado despenca numa lata de piche.
O único irmão do garoto, inspirador desta história-conto, da mesma forma não resistiu à inclemência da seca, do desenrolar dos anos. E veio a falecer ainda antes dos dez. Conforme o atestado de óbito a causa mortis foi tuberculose mais sífilis. Tendo a AIDS como doença confrontante.
Entrou outubro. Despediu-se setembro. Com ela entrando na passarela, a linda primavera, nada de a chuva mostrar a carantonha úmida. Tudo fedia a poeira naquela semana onde se passa a história.
E como todos nas vizinhanças oravam pelo nascimento da chuva! Todo cair de tarde, na roça dormiam a mesma hora das galinhas e os passarinhos, os menos de dez moradores daquele rincão solitário reuniam-se debaixo de uma sibipiruna, florida com suas florzinhas amarelinhas, olhavam pro alto, e sonhavam com água pura em queda livre, pingos gordos travestidos em milhares, e, uma vez na terra a fecundavam como quando o pai fecunda a fêmea no cio. Aquele era o cio da terra. Na opinião deles mesmos.
Depois de meses e meses de estiagem sofrida, eis que, plena madrugada bem temprana, raios, trovões espocaram do alto. De aí em diante ninguém mais dormiu. Era a coroação de seus sonhos. A chuva votar à pastaria seca, de novo acordar o verde cristalino, com seus incontáveis tons sur tons.
Era o milagre da natureza, tão vilipendiada e agredida pelos homens do mal, que se mostra em seu esplendor, mostrando-se vaidosa, com suas vestes roxas, amarelas, em cores mil cores, logo quando a seca ruge feroz, pelos campos e colinas.
Na manhã seguinte choveu apenas um tiquinho. Um pingo ali, outro acolá. Dois dias depois a mesma ladainha da chuva mansa. Tudo ainda cheirava a poeira. A qualidade do ar continuava de péssima qualidade. Irrespirável até.
Foi quando, no quarto dia daquela chuva inexpressiva, incapaz de mudar o status quo da roça de milho recém plantada, pezinhos verdinhos nasciam aqui e acolá, eis que despenca uma chuvadonha tal e qual a descrita pelo grande Guimarães Rosa, num de seus livros geniais.
Choveu a encher baldes e debaldes. Eram pingões graúdos. E ventos torrenciais.
O garoto Quinzinho olhava tudo pela janela embaçada. Com medo da realidade não mais virtual.
Caiu água a fazer ribeiros secos tossirem e se coçarem a risos escancarados. De lá se podiam ver lambarizinhos de rabos vermelhos saltitarem. Escapulindo dos anzóis.
Uma semana a seguir a situação de feliz tornou-se complicada. Árvores tombadas, energia elétrica foi-se embora, sem previsão de voltar. A parca produção leiteira foi por água abaixo. Única fonte de renda da população rural. O caminhão leiteiro não dava conta de apanhar o leite armazenado no tanque de expansão comunitário. Nem mesmo a junta de bois chifrudos, guiados pelo jovem Quinzinho, lograva sucesso até a cumeeira do morro agudo para levar toda a produção de dois dias apenas. E eram dez latões de cinquenta litros em cada viagem dividida em quatro partes iguais.
Em uma semana choveu para o ano inteiro. Se fosse apenas chuva criadeira nada de mal. Mas foi uma chuvarada, dias e dias o fenômeno se repetia, até transformar aquela região desguarnecida pela sorte madrasta em coisa ainda pior.
Toda ela ficou ilhada. Incomunicável nem pelo radinho de pilha fanho. Costume de todos os moradores daquele ermo sertão.
Ali não se chegava nem com carro de boi. Muito menos de avião. Nem busão.
Ao fim do mês, outubro as jabuticabas maduras davam sopa aos marimbondos, os humanos não provaram o sumo doce daquelas frutinhas de fazer salivar, mais água despejou do alto.
Foi num final de semana que o infausto se deu.
Nem bem o dia amanheceu, quanto todos ainda dormiam, muitos sonharam com o aquietar da chuva, afinal ela estava destemperada, uma senhora vetusta, considerada como bruxa, fez uma mandinga só por ela conhecida.
Deixou um copo vazio. Do lado de fora da casa.
Na manhã seguinte mais uma tempestade sobreveio. E tome chuva, caia água desatinada!
O copo que a dona deixou a sós do lado de fora da sua janela encheu tanto que acabou complicando ainda mais a situação local. Aquela chuva torrencial que despencou naquela cinzenta manhã foi a gota d’água.
Morreram todos de uma só vez. Sendo enterrados numa vala coletiva. No mesmo local onde dizem vagar a alma depenada da pobre mãe do Quinzinho.