Atribui-se a JB Alencastro o dito: “fazia a barba com a lâmina Solinger que meu pai me deu e o pincel de rabo de texugo, presente de minha mãe. Absorto e saudoso não consegui me lembrar da palavra texugo em inglês. Distraído, cortei-me. Mas as palavras que meus pais valorizavam: ternura, honestidade, carinho, amor, responsabilidade nunca esqueci. Elas jamais cortam. São espumas aparadas na barba branca que cresce em mim”.
Hoje, segunda-feira de um mês de outubro lindo, ao seu segundo dia, como de corrente desperto antes das cinco, fui ao banheiro para fazer a barba incipiente. Faço-a todos os dias, para que os fios brancos dela não acusem o ancião que já habita em mim. Não me cortei como apregoou o autor de tão belo escrito. Nem mesmo era de texugo o pincel usado para ensaboar-me a face. Hoje os cremes de barbear são exalados de dentro de um tubo que não dura muito. Como o tempo que me resta por certo não deve se estender longe demais.
Hoje, outubro em seu começo, em seu dia dois, ao acordar, indo logo ao cômodo de banhos para me barbear, ao olhar o espelho pressenti dele ouvir tais admoestações. Impertinentes algumas. Outras não.
Penso ter escutado a voz fragmentada do espelho, pois nele se percebia uma ranhura de cacos, no lado direito, deixamo-lo assim certos de que espelho quebrado não traz azar. Um dia iremos trocá-lo. Pena não ser possível trocar a idade que nos cavalga, os cabelos brancos, poucos ainda me restam, as rugas que febrilmente se manifestam, os pés de galinhas que ciscam em minha cara sem viço, o nariz adunco com o qual fui nascido. Há exatos sessenta e sete anos atrás.
O espelho espelho meu a mim confidenciou, quase num sussurro: “você, melhor seria chamá-lo de senhor, já deve cuidar da cova onde vai ser sepultado. Chega de tantas carreiras, tanta ansiedade, tantos livros escritos, tanta falta de apego ao silêncio. Pra que construir mais uma casa beira lago? Se já tem uma onde se esconder, não dos amigos, compadres, da família linda que construiu há anos tantos atrás? Chega, pare, descanse. Curta a quase aposentadoria que um dia há de chegar. Tranquilize-se. Aquiete-se. Refreie seu ímpeto de abraçar o mundo inteiro entre as próprias mãos. Você, o senhor, não mais é uma criança. Embora se sinta assim. Deixe os folguedos para seu netinho Theo. Não bula nos seus brinquedos. No máximo zele por ele. Para que um acidente não ocorra com seu pimpolho lindo. Graça compartilhada entre você, sua esposa, e os pais do Theo e outros aparentados”.
Neste exato instante, quando acabara de pensar no dito pelo espelho espelho nosso de cada dia, quem não se mira nele para pentear os cabelos, para fazer a barba, distribuir naquela face crispada pelos janeiros uma nesga de maquiagem, uma pintura clara?
Sobre a idade, ainda sobra em mim uma tacanha vaidade, anos e anos muitos me olham de trás, dizendo um dito contumaz: “olha meu ancião provecto. Não pense que é ainda um menino. Deixe seu finca, seu bete, sua patinete que um dia o fez ir ao chão, sua bicicletinha de rodinha amarela, hoje ela jaz escondida no sótão de suas lembranças eternas. E cuide de elevar seus pensamentos e orações para que um Deus qualquer, que se manifesta em todos os lugares, basta saber descobrir onde ele está, o abençoe e proteja em todos os dias que lhe restam. Na sua estada por aqui. Neste mundo mundo tão lindo, embora pouco seja feito para que ele continue desse jeito”.
Deixei o espelho falando com seus cacos. E fui além do banheiro.
De lá à cozinha foi só descer as escadas. Ainda me sinto capaz de levar os mais de vinte degraus numa boa. Por quanto tempo mais?
De volta ao andar de cima fui à sala da televisão. Ali, postada numa mesa redonda, uma cafeteira vermelha cuida do meu cafezinho expresso, que sai quentinho direto à xícara ali depositada. Café tomado, barba feita, uma chuveirada morna cuida de dar-me novo alento para começar outra semana. Igual a tantas quantas me esperam vida afora.
Não durou mais que quinze minutos para que eu deixasse minha casa entregue aos cuidados da minha amiga Ângela. A confiável secretária do lar.
Saí com meu foninho de ouvido plugado ao Spotify. Tentado tapar os ouvidos à azáfama que o dia traz.
Agorinha mesmo, já no consultório, onde escrevo até que o relógio mostre oito horas, sem o testemunho do mesmo espelho, penso, sofismo: quantas segundas mais me esperam? Quantos janeiros irão deixar fevereiro correndo atrás? Quantos dezembros ainda me restam? Quantos anos, meses, horas, dias, estarão oferecendo-me guarida?
Quantos? Não faço nem ideia. Nem quero fazer.