Vida vazia

O que seria da gente não fosse a família?

O achego, o lar, o abraço saudoso, o “que bom te ver novamente”, o afago carinhoso dos filhos, da esposa que com a gente compartilha bons e melhores dias, até mesmo do cãozinho amigo que abana o rabinho quando chegamos, no meu entender faz parte indissolúvel da felicidade.

O homem é um personagem gregário por excelência. Há os que preferem viver por si mesmo. Trabalha para acumular bens. Mas, na aurora de sua vida não tem a quem deixar, nem mesmo compartilhar, tudo aquilo que se amontoa naquela casa enorme, as posses conquistadas à custa de trabalho pesado.

Há os que preferem a solidão. Viver solitário é uma questão de preferencia. Que não combina com meus propósitos.

Há tempos conheci um cidadão especial.

Aos cinquenta anos não quis viver atado a nenhum laço de matrimônio. Filhos, nem em sonho. Desde que saiu de casa, ainda bem jovem, não voltou a casa onde nasceu nem por uma vez apenas.

Quem o visse andando na rua, em horas tempranas, já aposentado prematuramente por motivos que não veem ao caso, dizem ter sido por incompatibilidade com o trabalho, foi dispensado da fábrica por faltar demais, não se dava com ninguém, pensavam dele o pior.

Vida Vazia, apelido que herdou há muitos anos, era um ermitão por escolha própria.

Evitava as aglomerações urbanas. Andava pelo mesmo passeio desde quando escolheu seu próprio modos vivendis.

Na praça, onde de vez em quando aparecia, antes do almoço, ficava assentado ao mesmo banco.  Assim que chegavam outros ele fugia das conversas. Para ele vazias.

Comia na mesma mesa do mesmo restaurante. Num canto isolado. Afastado de todos e de todo mundo.

Morava num fim de rua. Numa casa enorme. Assobradada, com quatro quartos sempre de janelas fechadas.

Ele para ele se bastava. Por sorte tinha saúde. Que o manteve sóbrio por muitos e muitos anos.

Vida Vazia, aos sessenta anos, entregou-se à bebida.  Quantas e quantas vezes alguém o levava a casa, trocando os passos, falando coisas desconexas.

No entanto o meu personagem não endireitava.

Já andado em anos, a caminho curto para a outra vida, Vida Vazia não tomava jeito.

Uma vizinha do lado até que por ele se compadecia. Tentava ajudá-lo. No que era recusado sem explicação convincente.

Tem gente que não aceita cuidados. Vida Vazia era um deles.

Aos quase setenta anos caiu enfermo. Foi vítima de um acidente vascular cerebral.

Já não conseguia caminhar da cama a cozinha. Ficava o dia inteiro entregue aquele leito espaçoso. Mas carente de carinho, de amor, de afeto e compaixão.

Daí em diante nunca mais o viram do lado de fora da casa. A curiosidade cercava aquele homem que fez de sua vida um lugar onde ninguém deveria entrar. Ele escolhera a solidão para morar dentro dela. E não queria nenhuma alma para com ele se preocupar.

Chegara a semana santa. Domingo de Ramos se mostrou com sua procissão cheia de ramos verdes.

Vida Vazia continuava no seu caminho sem volta. De isolamento e introspeção.

Era segunda-feira quando uma vizinha, a mesma que lhe ofereceu ajuda, entrou-lhe casa adentro.

Não adiantava bater a porta. Do lado de dentro não se ouvia nada. A não ser o murmúrio do silêncio.

A boa senhora afinal conseguiu entrar na casa. Encontrou-a vazia no andar de baixo.

Subiu as escadas chamando pelo dono. Nada de ouvir a voz do Vida Vazia.

No quarto onde ele passava as noites apenas a cama se mostrava. Nada de ver o ocupante daquela casa.

A boa senhora procurou em todos os cômodos. E nada de ver o dono.

Depois de uma hora de procura vã, prestes a deixar a vivenda, eis que aquela senhora, desanimada, na parede leu a inscrição: “enfim encontrei a paz que tanto procurava. Consegui preencher minha vida vazia. Na morte que me acolheu de braços abertos”.

O curioso é que o corpo sem vida do Vida Vazia nunca mais foi encontrado. Em seu lugar nem saudade deixou. E sim o vazio do nada.

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