“É como atirar em onça usando bodoque de mamona”.

Quem ainda não usou um estilingue, ou bodoque, naqueles idos anos, para deitar ao chão uma rolinha desavisada, placidamente pousada num galho fino de jabuticaba, e via o bichinho estatelar-se ao chão, sem soltar um pio, e, uma vez de olhinhos fechados aquela avezinha, de peito estufado, levá-la ao fogo, fritar em óleo bem quente, para depois saborear aquele petisco como se fosse frango a passarinho, não teve infância, ou não foi criança.

Eu mesmo quantas vezes assim procedi. Não tinha pena daquela rolinha morta. Pois as penas que dela se desprendiam eram aproveitas no rabo da peteca. Que era feita de palha de milho seca. Recheada de areia fina.

Já hoje, criança desfeita, ao ver uma maritaca aninhar-se no telhado da casa da minha roça logo cuido de desentocá-la. Antes que a safada roa os fios de luz que correm soltos na laje escura por debaixo do telhado por onde caem goteiras nos dias de muita chuva.

O velho bodoque não existe mais. Em seu lugar agora uso uma espingardinha de chumbinho grosso. Mas raras vezes acerto o alvo. Não que a pontaria esteja falha. Acontece que, por excesso de cuidado, quando atiro o pássaro verde já se bandeou para outra árvore.

Deixando o passado de lado retorno ao presente. E conto a vocês a história, metade invencionice minha, a outra metade pura real realidade.

Zezinho Rolinha, outro moleque que adorava caçar passarinhos usando o mesmo artefato, sempre teve uma ambição na sua vidinha curta.

Embora nascido e crescido na roça a vida dura não lhe fazia lamber os sonhos.  O que sempre desejou, parecia quase uma quimera, era ser doutor.

Mas, naquele lugar ermo, afastado de tudo e de todos, fim de caminho para quem quer chegar a algum lugar e nunca chega, para ir à escolinha rural tinha de caminhar um longo percurso.

Ali concluiu o ensino médio. Aluno aplicado, nunca perdeu um dia de aula. Era considerado o primeiro da classe. Pena que, assim que completou dez anos, não teve como permanecer em seu lugar de nascimento. A velha escolinha virou escombros. E se mudou para a cidade perto.

Zezinho Rolinha persistiu em busca de seu sonho. Despediu-se dos pais com olhos marejados de gotas salinas. Foi morar na cidade na casa de um tio torto.

Ali passou anos a fio debruçado sobre um monte de livros. Concluiu o segundo grau com notas brilhantes.

Aos quase dezoito anos, completos naquele janeiro, foi aprovado no exame do ENEM. Escolheu uma faculdade de bom conceito. Aos menos de vinte e cinco anos se tornou médico.

No entanto  Zezinho gostaria de ir mais longe. Uma especialidade qualquer, desde que não fosse cirúrgica, era seu desejo desde a tenra infância.

Ser médico de família, cuidar das pessoas, poder encaminhá-las a salvo das doenças, sempre foi sua ambição maior.

Assim que recebeu o diploma logo se candidatou a um programa em voga naqueles dias. Foi chamado, depois de aprovado num concurso pouco concorrido, onde médicos de vários países disputavam as vagas com os brasileiros, para prestar serviço num lugar distante.

Ali, no norte do país, em meio a uma selva, Zezinho foi incluído no programa mais médicos.

Com que satisfação o doutor Zezinho chegou ao pequeno povoado. O salário não era lá estas coisas. Mas, como ainda era solteiro, e tinha morada e comida, o que percebia era suficiente para satisfazer-lhe as primeiras necessidades.

Atendia, das sete da manhã, ao cair da tarde, numa casinha improvisada, dotada apenas de uma mesa manca e uma caneta bica que quase sempre falhava.

Uma pequena multidão de selvícolas fazia fila desde a madrugada.

As doenças eram quase as mesmas. Desnutrição, malária, verminose, e alguma doença respiratória sem gravidade.

Por sorte do doutor Zezinho nenhuma doença grave apareceu nos primeiros meses.

Foi numa noite escura, chuvosa, que o jovem doutor foi chamado a intervir num parto complicado.

A criança, prematura, não conseguia sair pelas vias normais. Fazer cesariana naquele quartinho tosco era uma temeridade. Levar a parturiente para um lugar de mais recursos seria missão impossível. Não havia estradas. Apenas um rio caudaloso era o elo de ligação entre a seva e a civilização.

O barco a motor estava avariado. A mãe, de primeira viagem, exibia na face crispada de dor sinais de sofrimento intenso.

Doutor Zezinho chamou uma parteira experiente e ambos tentaram fazer a criança nascer. Não precisa dizer que o feto nasceu sem vida. Roxinho, com o cordão umbilical enrolado ao pescoço.

Foi o primeiro insucesso na vida do jovem médico. Outros se seguiram. Não por falta de dedicação. Ou competência profissional.

Mas, como era aquilo que desejava, doutor Zezinho não desanimou. Persistiu na lida. Enfrentou intempéries. Salvou vidas. Perdeu outras.

Até que um dia, do qual nunca vai se esquecer, chamaram-no, no meio da noite, para atender a um indiozinho que chorava de dor na barriga inchada. Era um caso de apendicite supurada. Já evoluída para uma peritonite grave.

Nada foi possível fazer para se intrometer entre a morte e a vida.  O indiozinho sofreu até fechar os olhinhos, sob o olhar contemplativo do jovem doutor.

Doutor Zezinho Estilingue ainda permaneceu naquela comunidade por mais dois anos. Só que depois acabou sendo transferido para mais longe ainda. O programa mais médicos continua. Outros médicos estoicos e denodados continuam a fazer parte desta legião de abnegados.

Mas, segundo a própria opinião do doutor José, e de outros médicos iguais, tratar de pessoas em lugares ermos, sem a menor condição de prestar uma assistência médica digna, é como atirar em onça usando bodoque de mamona. Geralmente quem se salva é a onça. E fica a descoberto o pobre médico que aceitou fazer parte de um programa que deve ser mais bem estudado. Pois, neste país do faz de conta, tomara não continuemos a fazer de conta que tudo vai bem. Quando, em verdade, a realidade é bem pior da que estamos acostumados.

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