“Isso não é vida doutor”.

Hoje, bem cedo, ao chegar ao meu consultório, vi meu aquário entregue apenas a um peixinho restante. Ele nadava no fundo. Seus companheiros haviam desaparecido daquelas águas límpidas. Ontem mesmo observei sobrenadando seu amigo, da mesma espécie, de barriga pra cima, morto, durante a noite de ontem. Retirei-o das águas borbulhantes. Não lhe pude dar um sepultamento digno. Pois acredito que peixes deveriam ser deixados no mesmo ambiente que sempre viveram. Pois ali são felizes. Dentro d’água, nadando placidamente sob nossos olhares embevecidos.

Viver solitário, como agora acontece ao peixinho sobrevivente, não deve ser motivo de contentamento. Pois todos nós somos feitos para viver em sociedade. Junto a amigos, aparentados, gente como a gente.

A vida de médico nos proporciona situações díspares. Assistimos, durante o decorrer de nossa vida, a momentos felizes. Como quando conseguimos salvar vidas. Ou pelo menos aplacar dores. Ou, em contrapartida, em nossa profissão, por vezes mal compreendida, a pacientes sofrerem dores contundentes. Sem que nada pudéssemos fazer para interferir em suas desditas. Ou pelo menos, com nossa intervenção de especialistas, operar aquela enfermidade que a eles causa tantos dissabores.

Ontem mesmo fui testemunha ocular de um caso como tantos que aparecem em nosso dia após dia.

Foi numa unidade de saúde pra onde vou algumas vezes durante a semana.

Uma fila enorme me esperava. Os pacientes são agendados segundo sua idade e incapacidade de locomoção. Quantas vezes cadeirantes, pessoas imobilizadas pelas doenças, para ali acorrem, sempre acompanhadas por parentes ou cuidadores.

Desta feita o primeiro a ser atendido foi o Seu Joaquim. Mas poderia ser Seu Manoel ou qualquer outro.

Do lado de fora daquela salinha modesta exalava um cheiro forte de urina.

Uma enfermeira, velha conhecida, foi quem ajudou a introduzir o Seu Joaquim em minha sala. Ele mal conseguia caminhar. Abengalado, trôpego, Seu Joaquim, com olhos marejados de lágrimas, disse-me que mal conseguia assentar-se.

Uma dor insuportável levava-o ao desatino.

“Doutor”, bradou o pobre infeliz. “desde há alguns anos atrás tenho uma sonda introduzida no canal da urina. Não tenho condições de ser operado da próstata. Sou diabético, sofri um acidente vascular cerebral, ando em cadeira de rodas. Acontece que a sonda precisa ser trocada. A urina sai por todos os lados. Menos por onde deveria sair”.

Examinei o pobre paciente com todo cuidado. Ali, naquele espaço exíguo, nada poderia fazer. A não ser encaminhá-lo a um hospital. Ou a algum lugar onde pudessem retirar aquela sonda entupida e trocá-la por uma nova.

Seu Joaquim despediu-se de mim apertando-me forte a mão. Desejou-me felicidade. Que Deus me abençoasse. Naquele dia e sempre.

Assim que ele deixou a minha sala, levado pela mesma enfermeira, pensei na vida boa que tenho levado. Não preciso ir longe para encontrar a tal felicidade.

Já no caso do Seu Joaquim, com o sofrimento que vi estampado em seu rosto vincado pelos anos, vislumbro o quanto certas pessoas sofrem.

“Isso não é vida”. Exclamou ele. Antes de partir rumo a um destino incerto.

A exemplo do meu peixinho do aquário o melhor para Seu Joaquim é se despedir da vida. Antes que sofra mais do que tem sofrido.

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