Por vezes fico pensando: quais foram os melhores anos de minha vida?
Ainda menino, quase deixando as fraldas de lado, aprendendo a engatinhar, tendo minha mãe a zelar por mim, observando seu filhote, o primeiro a nascer de uma ninhada de apenas dois, com olhares tão doces como mel recém tirado da colmeia, ou, um cadinho depois, quando chegava da pré escola, pra mim era o jardim da infância nomeado de Narizinho Arrebitado, defronte à casa dos meus pais, todo sujinho de chocolate no peito, que logo era passado n’água quente pela minha querida babá. Ai que saudade me afaga o peito ao me recordar da Tenta, uma pretinha mais negrinha que jabuticaba madura, que por mim nutria um enorme carinho, quase similar ao da minha mãezinha Rute. Foi com ela que aprendi os primeiros passos. A correria e trabalheira que a ela dava. Quando fazia pirraça e minha mãezinha me punha de castigo privado de assistir ao desenho animado dos Três Patetas. que fosse do tio Patinhas. O mesmo que piscinava numa piscina cheia de dinheiro, sovina como sempre se mostrou.
Ou, pensando mais tarde, quando completei o curso ginasial, no mesmo colégio Gammon onde hoje aprendem as primeiras letras dois dos meus netinhos, o Theo e Dom. Já que o terceiro está matriculado num colégio mais acima. O ciclista precoce de nome Gael, que não apenas corre como avoa um passarinho recém saído do ninho. Quando, por ter sido um bom aluno, o melhor dentre os piores, me foi oferecida uma medalha de nome Erasmo Braga. Nem sei por que tal medalha de bronze fundido teve este nome dado, pois ainda ignoro quem seja o tal Erasmo. Muito menos o tal Braga. Distinção esta que, no caixão em que meu saudoso pai foi sepultado fiz questão de que tal comenda o acompanhasse ao céu. Onde ele deve estar hoje zelando por seus três filhos. Na companhia da não menos saudosa minha mãezinha Rute.
Ou, de outra feita. Talvez tenham sido os melhores anos de minha vida, já alongada em mais de setenta anos, foi o dia quando entrei na faculdade de medicina da universidade federal de Minas Gerais. Que anos bons foram aqueles na linda BH. Tão díspare como agora ela se mostra. Muito mais espichada de quando ali residi. Cujo parque municipal era o caminho principal para chegar à faculdade, passando pertinho do depois edificado palácio das artes. Anos depois.
Talvez tenha sido, anos antes, quando passeava no rela do jardim da praça Augusto Silva. Que daqui se avista da janela ao lado. Com seu verde luxuriante e suas árvores frondosas. Tendo sua grama sendo reformulada, com seu piso em pedrinhas portuguesas substituídas as mais gastas. Os seus canteiros de flores sendo redivivos. Sua fonte luminosa carecendo de metamorfose. Naquele vai e volta, foi quando me deparei com uma mocinha prendada, moreninha brejeira, muito faceira, faltam-me palavras para adjetivar sua beleza. Que ainda a conserva quase intocável. Que, anos mais tarde tornou-se minha companheira. Esta pequena grande mulher, modelista de mancheia, que tem o dom de transformar mulheres fugitivas de um espelho. Com receio de que aquela superfície que realça tanto a beleza quanto a carência dela. Aquelas mesmas que fogem da balança como o diabo da cruz. E a minha estilista preciosa como um diamante de mais de não sei quantos quilates dá jeito de transformar aquela cintura fora das medidas em uma coisa mais parecida a um modelo de passarela plus size.
Os melhores anos de minha já esticada existência, não acredito que irei durar muito mais. Meu pai nos deixou aos setenta e sete. Fazendo as contas, setenta e sete menos quatro, em dezembro próximo completo setenta e três, tomara minha vida se estenda um cadinho mais.
Ainda me lembro de quando em minha querida Lavras apeei. De volta da Espanha. Precisamente da linda Madrid.
Ao chegar ao Rio de Janeiro, de navio, partindo de Barcelona. Depois de um ano inteiro numa correria tresloucada indo e retornando do alojamento onde morei, não sei se ainda existe a Casa do Brasil. Uma linda edificação na cidade universitária, pertinho da Clínica de Nuestra Señora de La Concepción, Escuela de Postgraduados, de la Fundación Jiménez Dias.
Nos primeiros dias de estágio naquela clínica de bom conceito aprendi, à duras penas, a não palpitar. E sim ver, oir, e calhar, para no molestar. E assim o fiz.
Em bico calado não entra mosquitos nem pernilongos enxeridos.
Foram dias maravilhosos aqueles que passei na velha Europa. Nas férias curtas conheci meio mundo. Percorri de leste a oeste o continente europeu. De norte ao sul varei desde a velha Constantinopla a Portugal. Passei pelo Reino Unido onde imperava a velha rainha. Que recentemente nos deixou. Paris, deveras me encantou. Dei uma voltinha pelo continente africano sem ter visto um leão e nenhures elefante.
Foi um ano magnifico. De muito aprendizado tanto na minha especialidade assim como na arte de viver.
Quem saberia dizer se foram estes os melhores dias de minha vida nem eu mesmo saberia aquilatar.
Na semana passada, na minha rocinha, no município de Ijaci, carecia de roçar um pastinho.
Antes da represa do Funil me tomar um pequeno naco de minhas terras entre nós havia um corguinho de águas correntes e límpidas. Atapetados de pedrinhas branquinhas. Cheio de lambarizinhos que beliscavam os nossos anzóis, e saltitantes e atrevidos não me permitiam fisgá-los.
Incontáveis vezes saltava este mesmo ribeirão com destino certo. Era comum vê-lo a cuidar de sua horta de couve, beterrabas vermelhinhas, cenourinhas de uma amarelice meio suja de terra, mandiocas a desmancharem-se de tão macias só de ver a panela cheia de água quente.
Brócolis era de um verdume sem par. Batatinhas se escondiam debaixo da terra com medo de dentro dela serem retiradas. Beringelas tinham uma cor entre o roxo escuro e outra pra mim indefinida. E os jilós? Os meus prediletos cozidos com uma pitadinha de azeite e sal. Quiabos saltitavam soltando suas pontinhas indicadoras de estarem no ponto. Couve flores, abobrinhas bicolores, pepinos os deixava para minha querida esposa.
Tião do Cervo, com sua barbicha a branquear, pessoa cujo único defeito era bondade em excesso, sempre me esperava com um lindo sorrido na face sulcada pelos anos. Ele não plantava para revender. E sim para distribuir aos passantes. Amigos, desafetos, desconhecidos.
Agora o velho Tião foi intimado pelo Deus pai para cuidar de sua horta no céu. E deixou como herança não apenas o prazer em plantar verduras e a força de trabalhar, ao seu filho Palhinha. De quem sempre que vou à roça paro um cadinho e dali levo além de saudades de seu pai, verduras de várias qualidades. A preços mais que razoáveis.
Um dia destes, um outro filho do velho amigo Tião aquiesceu ao meu pedido para roçar o meu pasto do lado de cá da represa do Funil.
E ele aceitou de imediato. Ao final de três dias o pasto estava limpinho. Creio que somente os carrapatinhos micuins ainda restam. Eu os respeito e eles não a mim.
Quando Joãozinho, irmão do Palhinha, terminou o serviço, e fomos acertar o quanto deveria pagar, ele simplesmente me olhou nos olhos chorosos e me disse, vendo a velha casa onde nasceu, entregue ao abandono: “doutor Paulo. Foi ali que passei os melhores anos de minha vida.”
Foi quando choramos juntos.