A menina que vivia a prantear os mortos

Ontem dei uma passadinha pelo campo santo.

A palavra cemitério prefiro deixar escrito a segunda.

Campo santificado. Lugar onde nossos restos mortais são deixados num dia pra muitos incertos. Pra mim, já disse e repito: caso fosse eleger um dia ideal para morrer, jamais seria num dia como esse. Que dia lindo amanheceu agora, nesta exata hora, seis e vinte e dois minutos, de uma sexta feira dezessete de março.

Caso eu pudesse escolher a data para a minha passagem ao outro lado da vida seria num trinta e um de fevereiro. Pra aqueles que não creem que ele exista assistam, por favor, a um filme, já várias vezes reprisado pelos cinemas e até mesmo pelas tvs, de nome Ghost.

Onde o herói daquela película é morto durante um assalto. Sob os olhares incrédulos de sua bela amada. Que nada pode fazer para impedir a morte por assassinato de seu amado. E, assim que a morte acontece sualma fica perambulando pela vida terrena por tempos a fio. E passa a assombrar, no bom sentido. Aquela a quem amou desmedidamente.

Muitos seres viventes me criticam por gostar de passar minutos fugazes num campo santo.

Pra mim é um lugar de paz e reflexão. Digo e escrevo mesmo introspecção que nos permite pensar na vida que temos levado. Pois ricos, pobres, enfermos e em plena saúde. Por mais que tentemos impedir é pra lá que iremos. Alguns preferem ter seus corpos incinerados. Não numa fogueira onde e quando, na idade média, as bruxas, avoantes em suas vassouras aladas, eram queimadas consideradas seres nocivos e prejudiciais à sociedade de antão. E sim numa câmara, tais e quais as de gás, nos campos de extermínios pelos nazistas soldados de Hitler. Um ditador dos tempos em que a linda Alemanha pensava dominar o mundo impondo seu desejo de aqui deixar sua marca de apenas permitir deixar seu legado de uma raça superior, a branca, ariana, para ser mais exato.

Tem gente que cultua os cemitérios. Em verdade apraz-lhes passar horas e horas entre túmulos. Jazigos perpétuos. Admirando velhas fotografias presentes a enfeitar o tampo das lápides quentes ou frias, depende, ser faz calor ou frio reinante. E muitos ainda deixam flores sobre os túmulos mesmo não sendo dia de finados.

Eu mesmo sou um deles. Não sempre por ali passo. Ontem foi esse dia.

Foi fácil encontrar a entrada pelo grosso e espesso muro que cerca o cemitério situado numa região central de nossa cidade. O chamado São Miguel é o mais vetusto. Restam outros dois. O da Saudade e o terceiro, logo a entrada ou à saída de nossa Lavras cujo nome olvido.

Desejava, na manhã de ontem, prantear meus mortos. O túmulo dos meus pais fica logo próximo à entrada principal, que no dia de ontem estava com o portão trancado a cadeado.

Logo perto da capelinha, onde creio são realizadas missas, deparei-me com uma meninazinha que me chamou a atenção.

Não era tão menina assim elazinha. A mim me pareceu ter mais de vinte anos.

Olhei-a numa mistura de incredulidade e admiração.

Era de média estatura. De pele branquinha como algodão sem receber corantes. Sua face era de uma cor tão branca que me ofuscava a visão.

Seu rosto era tatuado na testa ancha, rente aos cabelos. Seus cabelos negros eram apensos por uma coroa de espinhos como aquela que recebeu Jesus no seu calvário.

Ela não sorria mesmo que lhe contasse uma anedota por mais engraçada que fosse.

Tentei achegar-me a ela e foi custoso conseguir-lhe o aceite.

Mesmo assim, depois de muito insistir aproximei-me.

Em primeiro lugar perguntei a ela seu nome. E elazinha, depois de desfranzir o semblante taciturno e sombrio, simplesmente, monossilabicamente me disse: “Sofia”.

Já eu me apresentei, para não assustar a quase criança, como um médico escritor que por ali passava para visitar o túmulo dos meus pais.

Foi aí que nossa prosa continuou mais abertamente sem freios ou interrupções.

“O que você faz aqui”? Foi esta a minha pergunta logo a seguir.

E ela me respondeu: “eu amo esse lugar. Venho sempre aqui ao cair das tardes quase mortas. Aqui encontro a tão sonhada paz que sempre almejei”.

Depois fez-se silêncio entre nós. Uma pausa, um respiro.

A seguir continuei minha inquisição: “você tem parentes sepultados nesse campo santo”?

E da sua boca tinta num batom negro escutei: “tenho sim. Meu paizinho amado. Minha mãezinha idolatrada e dois avós do lado do meu pai’.

“E você, minha ainda criança. Consegue atenuar a saudade que sente deles vindo aqui, de quando em vez”?

E ela, com seus olhinhos rasos d´água assentiu que não dizendo assim: “não. Eu, em verdade, desejo morar em definitivo nesse campo santificado. Como disse amo esse lugar. Gostaria de ser sepultada em vida. Aliás, se isso que tenho vivido se chama vida eu a amaldiçoo. Fui estuprada aos cinco anos. Por um tio torto que está enterrado aqui. Vizinho ao túmulo dos meus amados pais.  E, quando para aqui me trouxerem ainda respirando e vivinha. Vou sair do meu túmulo e assombrá-lo todas as horas de dia e de noite. Não vou deixá-lo em paz um minuto sequer”.

Era hora de ir embora e nos despedimos com um abraço fraterno e apertado. Desejei-lhe muita paz e bom descanso.

Hoje, agora cedo, soube que aquela linda menina, chamada Sofia, foi sepultada na noite de ontem.

Aquela doce criança, não mais menina, agora pode prantear seus mortos entre eles. Pertim deles, em paz….

 

 

 

 

 

 

 

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