Mesmo assim nos damos bem

A arte de conviver requer, além de uma dose maiúscula de paciência. De aceitar os defeitos do outro. De contar até mais de um milhão até perder a paciência e partir para as agressões.

E, se não bastasse tanto, ainda ter de ouvir e ficar calado. E não continuar a discussão que não leva a nada a não ser mais ofensas ditas que mais tarde serão esquecidas.

Quando a gente chega a mais de muitos anos de relacionamento tem-se de tolerar tantas coisas e loisas. Que, se fosse anotar quantas seriam numa crônica inteirinha não iria caber tantas frases e palavras.  Teria sim de escrever um livro inteiro com mais de quinhentas páginas.

Quando de um lado vem palavrão devemos amaciar nossos impropérios. Um xingo deve ser respondido com deixa pra depois de cessar a raiva. Certo que quando o barro seca fica mais fácil atravessar a estrada. E não iremos atolar na lama escorregadia.

Tenho dois amigos, dona Filomena e seu Agostinho. Que juntos estão desde quando Adão perdeu o paraíso por culpa de uma maçã envenenada.

Eles se conheceram na escola. Sua dona Filomena tinha então quatorze aninhos. Uma mocinha pudica que usava uma sainha que ia até os tornozelos. E elazinha se ruborizava todinha quando o garoto Augustinho a ela lançava olhares pecaminosos. Ela ainda se lembra de quando aquele garotinho espertinho deixava cair um apontador debaixo de sua carteira. Não de dinheiro e sim onde ela deixava seus caderninhos. Com uma desculpa esfarrapada de catar aquela coisa de apontar lápis. E devolver a sua dona. Agustinho olhava e cobiçava aquilo que se escondia por debaixo de sua sainha. Por sorte delazinha. E azar do molequinho. Filomena usava combinação e espartilho. E tudo aquilo encobria sua intimidade. Que só foi vista anos depois. Quando, no banco de trás do seu carrinho tudo foi pelos ares.  E, daquele encontro fortuito outros se deram. Até que se casaram com Filomena moça já bem adiantada quase na hora do parto.

Quase um centenário se foi. Anos deram adeus a esse mês de outubro primavera.

Seu Agostinho completou oitenta. Dona Filomena dois a menos.

Eles nunca se deram bem. Até pensaram na separação. Viviam como gatos e cães em litígio por causa de um osso.

Mas, depois de tantos anos de união. De tantas noites dormindo juntinhos. De tantas rusgas que terminaram na cama. De tantos pedidos de desculpas.

Eles entraram em acórdão.

Quando um não quer dois não disputam quem vai comprar pão. Fica mais fácil um deles ir à padaria. E ela fica aqui pertinho. Discutir por nada não compensa. Sábio dito bem dito.

Foi no sábado pregresso que estive com eles. Chovia naquela hora já bem tardia.

Como não trouxe guarda chuva não tive como recusar aquele amável convite de entrar em sua casa.

Dona Filomena, já de camisola, bocejava de sono. Seu Agostinho, de ceroula amarela da cor da cenoura, tomava sua cervejinha estupidamente gelada. Fazia calor naquela tarde, quase noite.

Ao entrar e me proteger da chuvarada acabei escutando um resto de briga.

Dona Filó, entendam Filomena, bradava em altos brados: “Guto! Não molha o tapete. Não suja o chão que eu já limpei. Lava o copo que você usou. E não se esqueça de tomar seu remédio para dormir. Se não passa a noite em claro na escuridão…”

Guto, como ele era chamado pela esposa. Não disse que sim nem que não. Simplesmente lavou o copo. Desligou a televisão. Tomou seu remedinho para tentar dormir sossegadinho no sofá da sala. Vestiu seu pijamão listrado e foi dormir.

Antes da minha despedida ainda ouvi da dona Filó isso.

“Tá vendo? Aqui em casa quem manda sou eu. A última palavra é minha. Guto não discute quando dou as ordens. No começo do casamento as discussões eram intermináveis. Agora a paz reina em nossa morada. Eu e Guto somos bem distintos. Cada um pensa diferente. Enquanto eu falo ele se cala. E assim nos damos bem”.

Foi então que aprendi a lição. Cada um é cada um. A arte de bem conviver é se calar quando um tenta brigar. Melhor conduta não há.

 

 

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