Deixei-me enterrar

Uma das grandes vantagens do envelhecimento é ver afundar valores.

Ambições deixam de ocupar o lugar mais alto do pódio. Ansiedade diminui ou deixa de existir.

A gente fica velho e mais e mais sábio. Acumulamos, com o passar dos anos, experiência no decorrer da vida. Erramos menos já que aprendemos, com os senões, a não incorrer nos mesmos erros. Envelhecer é inevitável. Como morrer um dia seremos privados da vida.

O velho tem prerrogativas. Já que viveu mais tempo que os jovens.

A vida pra gente não tem mais a cor da esperança. Tudo fica cinzento. Da corzinha exata de um dia chuvoso.

Em crianças temos a expectativa de viver muitos anos mais. Quando ficamos velhos cada dia deve ser vivido como se fosse o último. Ainda bem que não sabemos quando vamos nos despedir. Essa incógnita pra mim é uma doce realidade.

Uma vez idosos deixamos a vaidade de lado. Quase não mais nos olhamos no espelho. Pra quê se ele nos diz a verdade.  “Vê se te enxerga velhote. Não mais tens a idade de outrora. Agora vives nos descontos. Já passou a hora da sua despedida. Cuidado ao atravessar a rua. Não se esqueça da sua bengala nem a dentadura que pode se afogar no copo d’água”.

Assim caminha a desumanidade. Um dia ficamos velhos, decrépitos e perdemos a audição. Não mais enxergamos além de nossas mãos estendidas. Um dia nem um par de óculos adianta mais. Num futuro incerto vamos nos despedir da vida. Seremos substituídos por gente mais nova. Pra mim não é novidade. Já que pra mim foi assim.

Mas o velho deixa enterrar ambições. E pode ser esquecido numa casa de idosos sem ao menos receber visita daqueles por quem tanto fez e agora pra eles tanto faz.

Deixamos enterrar a ganância. Já que agora, na senilitude, acabamos por compreender que nada se leva dessa vida a não ser saudades dos entes queridos que nos sucedem. E a gente não sabe quem em verdade gosta de nós. Pois, em outra vida, se é que ela existe. Não mais somos capazes de viver de novo e comprovar se os sentimentos são verdadeiros ou mentirosos.

A gente, uma vez idosos, soterramos o orgulho e maledicências. Já que pra gente tanto faz como se desfaz. Se gostam de nós ou nos ignoram.

Uma vez velhos, decrépitos, ausentes e esquecidos.  Deixamos de lado nossos sonhos. Dormimos pouco, acordamos em sobressalto. A noite nos mete medo. Pois não sabemos se vamos acordar de novo.

Agora, que enterrei amigos, desfiz-me de amizades verdadeiras. Assento-me a um banco da praça curtindo minha solidão. Todos da minha idade já se foram.  Só resta eu para prosear comigo.

O velho é um poço profundo de saudades. Já que em breve pode ser enterrado. Mas leva com ele lembranças imorredouras. De quando criança brincando descalço nas águas barrentas da enxurrada.

O velho não se esquece da primeira namorada. Aquela meninazinha de pernas grossas talvez agora engrosse as fileiras dos anjos do céu.

O velho é um ser desprendido. Suas posses já foram doadas. Que façam bom proveito seus netinhos e filhos. Mas não se esqueçam de que fui eu que as deixei.

Deixei enterrar não só meu corpo sem vida.  Meus restos mortais vão ser consumidos pela terra. A minha ossada vai ser ensacada num saco preto. Mas não se esqueçam de mim por tudo que fiz. Por vocês, minha família a quem amei tanto. Não se debulhem em pranto se não se sentirem assim. E não digam o quanto fui bom, pois não poderei escutar, estarei sepultado.

Agora, que morto estarei, não digam apenas coisas boas sobre mim. Tive meus momentos de raiva. De descortesia, de pura maldade. Mas penso, uma vez enterrado, que minhas qualidades sobressaíram.

Deixei-me enterrar, não por vontade própria, mas Deus quis assim que lhe fizesse companhia. Um dia estarei junto a Ele, ao lado dos meus pais.

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