Aqui jaz, sepulto, não apenas um amigo, como a saudade dele, e de tudo que ele gostava

Hoje aqui estou, domingo de carnaval, uma tarde cinza, no horizonte o sol ameaça se mostrar, no entanto, contrariando-me as previsões, a chuva ora cai, ora sai de cena, noutro minuto migra a outro lugar. Agora mesmo relâmpagos, trovões, ciscam o ar. Vai ser uma linda noite. Não para os foliões, no Rio de Janeiro as escolas de samba não pensam que a chuvadonha que vai por certo cair, não traz, no seu rastro, benesses a quem assiste ao desfile, pode manchar a beleza e magnitude da festa momesca, no entanto, quem vive na roça bem sabe o quanto a chuva mansa leva no seu gotejar de pingos miúdos, que não somente enriquecem a terra, fertiliza as sementes recém enterradas, superficialmente, como idem faz nascer o sorriso ingênuo cheio de dentes em falta, apenas é o que falta, no bom e confiável homem do campo.

Por falar em confiança, em fidelidade, quanto mais convivo entre homens, mais me achego aos animais.

As vacas, seres que ruminam, não sei se no caso delas ruminar pode ser equiparado a pensar, são, em verdade, os seres vertebrados que mais dependem de nós. Caso deixássemos vacas ao desabrigo, soberbamente na seca, sem o trato devido, não só a produção de leite cairia, como, mais tarde, nessa época de entressafra, quando a pastaria se convertesse apenas num leito de terra desnuda, que, a menor faísca pegasse fogo, e das cinzas não sobrasse nada, apenas corpos carbonizados, sinais de vida anterior, as mesmas vacas fatalmente não mais existiriam.

Agora a chuva parou. Peremptoriamente, penso eu.

O céu, quase totalmente azul, nuvens cinzentas ainda se mostram lá em cima, quatro horas da tarde meu relógio mostra, aqui mesmo, pertinho da casa beira lago, onde hoje moram dois cães preto e branco, Pirunguinha e Valquíria, dois border collies não adestrados, dóceis e companheiros, só os vi latindo, descansam na varanda, eles me olham de soslaio, talvez me ditando o que escrevo, depois de um dia lotado de inspiração, tendo parte da família aqui comigo, faltam minha filha, meu genro, e, principalmente meu netinho Theozinho, foi que me lembrei de outro cão.

Este cão era de posse de meu filho e de sua esposa, a doce Vanessa. Seu nome – Nietzsche.

Era da raça labrador, nome muito parecido a lavrador, pessoas nas quais confio, como aprecio e endosso a minha confiança nos cães.

Nietzsche nasceu em março de dois mil e sete. E veio a falecer aqui mesmo, no dia do aniversário de sua dona, a minha querida norinha Vanessa. Ele feneceu lentamente, depois de esforços conjuntos de meu filho e da sua dona, na tentativa inglória de curar-lhe um câncer de pele que deu metástases.

Oito anos apenas Nietzsche viveu. Poderia atingir, como seus iguais, quiçá vinte, ou mais anos. No entanto ele morreu antes do tempo, precocemente, não sei com quantos anos veio a falecer o inspirador do seu nome, o notável filósofo de mesma certidão de nascimento.

Minutos atrás fui fazer uma visita rápida. Logo perto, descendo os parcos degraus que dão para a piscina, outra leva de degraus, passando pelo portão da garage de barcos, virando a esquerda, fomos dar, eu e meu sobrinho, filho do meu único irmão, já com dois filhos, à sepultura onde jaz o cão do meu filho Stenio e da sua gauchinha biscuit.

Nietzsche, segundo diz a pedra mortuária, lápide feita por aquele casal que considerava Nietzsche cão como seu próprio filho, uma pedra decorativa de nome São Tomé, retangular, com a inscrição: NIETZCHE e as datas – 03/07- 04/15, e um desenho que recorda um cão grande de olhos em forma de lua cheia, arregalados ao luar, posso imaginar latindo de saudades deles.

Agora a chuva serenou. Creio que as lágrimas de Stenio e Vanessa já serenaram. As minhas não foram tão sentidas quanto as deles dois. Ainda pressinto a saudade deles nas suas atitudes durante as visitas que ambos fazem ao túmulo de onde saí agora.

Ainda me lembro do Nietzsche vivo. Dos seus gostos e predileções: buscar qualquer coisa que fosse atirada, fosse no lago, ou na relva perto ou longe. Das suas andanças longas como as minhas. Dos nacos de carne, restos de churrascos que ele abocanhava sem deixar cair ao solo. Do dia quando me senti deveras importante. Quando, numa corrida até Itutinga ele, Nietzsche, e meu outro border collie o Paulo Rosa, que aqui veio a passeio, já que ele vivia noutro local encantado, minha rocinha em Ijaci, ambos foram meus guarda-pernas, Paulo Rosa mais serelepe correndo adiante, Nietzsche mais lento, como eu.

Sei o quanto Nietzsche gostava de tantas e tantas coisas, enumeradas acima. Mas hoje, o que resta dele é apenas uma cova rasa, fincada num terreno arenoso, e a saudade do filho Stenio e Vanessa, e um cadinho minha, do seu filho canino, educado ao extremo, como eu não sou…

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