Não sei se pela idade, lá se foi a mocidade, anos atrás, estou ficando mais e mais casmurro, resmunguento, intransigente, principalmente no que se refere a coisas das quais não compartilho a qualidade.
Antes, nos verdes tempos da minha juventude, naquele uniforme verde folha de ráfia, calça folgada, camiseta branca, agasalho verde mata nos tempos de frio, talvez mais dotado de paciência, a cultura ainda não se agasalhava dentro de mim, a intranquilidade frente a fatos os quais contestava frugalmente eram raros repentes de ira mediana. Hoje a mesma ira virou raiva profunda. Quando percebo, no cotidiano do qual sou fanzoca de carteirinha assinada, olhos sempre atentos a tudo que me passa a frente, algo que me ensombreia a visão, exemplos: um homem caído ao chão e outros iguais passando por cima, cães vadios sendo maltratados, lixo sendo atirado na rua, praças sem o devido trato, mato, lixo esparramado nas ruas por onde ando, tenho sempre o costume de deixar o carro parado defronte a onde moro, coisa que infelizmente não acontece aos demais cidadãos, quase me perco dentro de um espaço apertado dentro do meu cérebro efervescentemente febril, que quase deixa fundir os neurônios hiperativos, dentro da impaciência que me tomou pelo queixo duro.
Como me têm apoquentado as agruras por que passam os pobres pacientes sem plano de saúde decente! Eles sofrem à mercê do SUS. Sou testemunha ocular de acontecimentos que fazem pasmar leões selvagens à caça de pobres zebras indefesas, que só dispõem das suas listras zebradas a protegê-las nas savanas africanas. Ainda vou fazer um safári, apenas fotográfico, ao continente negro onde uma vez apenas passei, mesmo assim com a velocidade de uma gazela em fuga.
Sou médico lotado na saúde pública desde quando Adão perdeu o direito de viver no paraíso, no incidente da maçã. E tenho muita experiência no assunto, que me capacita a escrever livros e mais livros sobre o tema. Sem fazer poema ou contar prosa.
Idem tenho um consultório privado. Local aonde chego bem cedo, quase madrugada, na intenção de escrever.
São dois casos e duas medidas. Os pacientes privados e os que procuram atendimento nos postos de saúde, hoje com nomes pomposos, assaz complicados, com AME, UPA, URPA, e coisas de menos valia.
No primeiro caso o enfermo de urologia é recebido sem enfrentar listas de espera e longas filas. O atendimento, apesar de objetivo, é quase sempre acompanhado de diagnósticos precisos, e tratamentos efetivos. No caso dois, depois de amargar tempos enormes em esperas às vezes infrutíferas, quem espera demais cansa, o pobre doente, carente, não tem a devida solução para amenizar-lhe as mazelas, tanto do corpo frágil, quanto da alma impura.
Outro fato que merece um dedo de conversa são os exames exagerados, custosos, desnecessários, que esculápios novatos (esculápio é um nome antigo para nomear médico),solicitados nas folhas impressas no computador, felizmente, se fosse escrito à letra de mão nem o médico solicitante daria conta de decifrar tais hieróglifos, parece que ele se esqueceu as aulas sobre caligrafia, na escola primária, hoje chamada de primeiro grau.
Hoje mesmo, durante um atendimento rotineiro num posto de saúde local, dos mais antigos, para onde me desloco, sempre nas próprias muletas pernas, quase a hora do almoço, a quase última doente do dia era uma senhora morena, educada, um tanto quanto estressada, por motivos óbvios.
Duas aparentadas, uma de noventa e quatro aninhos apenas, idosa portadora de doença incapacitante, esquizofrênica, mal de Alzheimer, acamada para sempre, padecendo de todas as enfermidades constantes nos grossos compêndios de medicina. A outra, alguns aninhos mais jovem, apenas dois deles, em pé de igualdade nas doenças, me solicitou que transcrevesse pedidos de exames, mais de cinquenta, para o formulário do SUS, no sentido de economizar um pouquinho, já que tinha pago o preço cobrado por uma Ressonância Magnética, uma Tomografia especial, findaram-lhe as economias. Não é pra menos.
Foi quando acordei em fazer-lhe a vontade. Preenchi dez folhas de pedidos de exames. Faltou espaço para os finalmentes.
Quando a polida e ansiosa pessoa deixou a salinha acanhada, num calor dos diabos, lá fora não sei quantos esperavam a vez de receberem a vacina contra a Febre Amarela, foi que pensei nos porquê dos praqueres.
Pra que fazer tanto exame, sacrificar as veias da pobre senhora idosa, vivendo nos descontos, na prorrogação, no último fio de vida que ainda lhe resta?
A experiência que acumulei, nestes mais de quarenta anos de medicina, foi que se deve tratar não a doença, e sim o dono dela. Se é que doença tem dono, ou inquilino. Tudo deve ser feito em prol do bem estar do paciente. Em seu louvor o médico deve atuar.
Daí o porquê dos praqueres.