Enternece-me

Um dia destes, ao transportar telhas de alumínio à roça que tanto amo, num morro topetudo elas simplesmente me deixaram, amarradas toscamente na caçamba da minha pratinha valente, e deitaram-se estrepitosamente no asfalto duro, causando em mim estupefação, um enorme susto. Sorte que, no exato momento não havia nenhum personagem usando motocicleta atrás de nós. O estrago neles dois, tanto no veículo sobre duas rodas, e no seu condutor, seria por certo de suma gravidade. Talvez provocando a morte do jovem simpático e dotado de grande espirito de clemência, pois ele mesmo, ao ver as telhas pendidas na cara dura do asfalto, parou sua pequena moto. Gente boa da roça que era deu conta de voltar as duas telhas, um tanto amassadas, só que bem mais seguras, atadas ao amarrio protegidas por papelões macios, pedidos por empréstimo a um sítio vizinho.

Uma vez de volta a estrada, com o objeto do transporte atado por mãos sábias a minha caminhoneta prateada, a maneira de agrader ao meu benfeitor, naquela hora temprana, foi oferecer-lhe meu novo livro, Mugido de Vaca e Cheiro de Curral. Não sei se mais uma vez irei vê-lo. Tomara em circunstâncias menos estressantes. Em horas buenas.

Uma vez chegado ao meu ponto final, a roça onde está por ser concluído meu sonho que tem me custado bastante caro, creio que no momento exato da sua conclusão, se Deus me permitir desfrutar da saúde que me cavouca agora, a alegria de ali passar as noites, no andar de cima da casa de dois deles, a escrever olhando a noite entrar dentro dela mesmo, me recompense de tantos gastos e atropelos de fim de obra.

A noite de ontem, para a manhã rica em sol do dia de hoje, já de volta ao meu pouso final, a escrever com saudade do teclado do meu computador de teclas brancas e assento escuro, foi passado em outro mar mineiro de águas doces, a represa de Camargos.

Foi um sábado e um dedinho miúdo de um domingo lindo.

Ali, na sua casinha, onde minha cadelinha, uma linda border collie chamada de Laika Rosa, cuida com olhos e sentidos atentos de sua ninhada de cinco filhotinhos, filhos dela e do meu amigo Pirunguinha, foi a primeira vez que me enterneci.

Como o instinto maternal foi de pronto desperto nela, mãe neófita, parida há apenas dez dias.

Antes, como a Laika me foi dada de presente a idade de um ano apenas, ela não estava acostumada àquele lugar paradisíaco, assim que lhe era dada a chance ela se escafedia, perseguindo carros que pelos seus uivos e latidos frenéticos passava.

Já hoje, mãe amantíssima, ela apenas se afasta dos filhotes para acompanhar seu amante amado em suas carreiras beira d’água, quando o irrequieto Pirunguinha tenta morder as marolas feitas por uma embarcação passageira, e nunca se satisfaz com os passarinhos voando baixo, ou pousados a cantar nas arvorezinhas ali plantadas por meu saudoso pai, e logo volta ao ninho onde nasceram seus cãezinhos, três machos e duas feminhas.

Como ainda penso ser a noite um desperdício de tempo, para quem não tem tantos anos a sua espera, ao acordar, antes das cinco da manhã, deste domingo ensolarado e quente, encontrei Laika Rosa a amamentar. Os cinco estavam a sugar-lhe as tetas, famintos que sempre estavam. Com redobrado cuidado encaminhei-os todos de volta ao seus aconchegos. Laika não os perdia de vista, mãe extremada que era. Saí da casa de Camargos ouvindo dela uivos de desespero, talvez por não me ver novamente. Ledo engano dela.

Ontem, sábado, ao soltar a mãe Laika do seu canil, trazendo seus cãezinhos a mão aberta, todos os cinco, para que todos ficassem aos meus olhos enternecidos de avô, comecei meu enternecer pelas coisas e loisas lindas que a mãe natureza nos proporciona a cada dia.

Estamos ainda no inverno. Logo desponta a primavera com seu sorriso floral.

Enterneço-me, e não me canso de ficar deslumbrado, com as cores lindas da época seca do ano. Como podem os ipês darem seu show de cores amarelas, brancas, roxas? Considerando-se que as chuvas pararam de chorar?

Causa-me um súbito lampejo de admiração ao ver florzinhas pequeninas, amarelinhas, de outras cores tantas, debruçadas ao chão, quase ainda vivas.

Enterneço-me ao ver mães, jovens ainda, a cuidarem das suas ninhadas, como se fossem preparadas, num curso superior, sem ao menos terem concluído o primeiro degrau de uma escada longa, para muitas delas o estudo já atingiu seu ápice.

Bate-me um fundo no peito sensível ao vislumbrar as águas plácidas da represa onde passei a noite, oferecer alimento aos pássaros, como garças e outros mais, que ali pescam, sem muito esforço, basta um raso mergulho, e de seus bicos emergem peixes variados.

Enternece-me ao sentir, e como sinto, as loucuras insanas que as mães, mesmo as humanas, fazem no intuito de proteger seus rebentos da violência do mundo hodierno, muito embora por muitas vezes não conseguem ver seus intentos serem vitoriosos ao verem os filhos tombarem sob balas perdidas, ou mercês da falta de assistência médica, vítimas da fome, da miséria, que infelizmente vitima inocentes em nosso meio hostil.

Hoje deixei a casa de Camargos entregue às pessoas boas que dali cuidam. O caseiro Valdir, sua esposa dona Nazaré, seus dois filhotinhos, o Careca e a linda Manu.

Assim que minha pratinha valente deixou para trás aquele cenário lindo Laika Rosa ganiu de dor. Pirunguinha tentou me acompanhar. Por pouco tempo, felizmente.

Tudo aquilo e tantas coisas outras enterneceram-me profundamente. Ainda bem que facilmente me enterneço. Sou refém do sentimento. O choro em mim escorre fácil. As lágrimas com facilidade umedecem-me a face.

Antes não era assim. Seria tal atitude fruto da idade madura? Se sim, melhor pra mim. Da próxima vez vou nascer velho. Seria bom pra quem? Talvez pra mim, tão somente a mim mesmo, um velho com alma de criança, doce esperança de que um dia isso vai acontecer…

Deixe uma resposta