Por que a tinta dos anos não me causa desengano?

Olhar pro espelho, de manhã bem cedo, ao lavar o rosto e escovar os dentes que ainda me restam, dar uma ajeitadela rápida no resto dos cabelos, antes fartos e de um lindo topete, tem feito parte de meu costume, há tempos e anos longe.

Antes de fato exibia, onde hoje é um descavado quase luzidio, como era meu pai, um campo de aviação com touceiras de gramas, quase um campo de várzea, como disse, na semana passada o motorista da lotação que me conduzia ao Ame, o simpático e bem articulado Chumbinho, assim que adentrou ao ônibus um senhor já bem idoso, calvo como bola de bilhar, o qual se descuidou do sol forte do meio do dia, que apresentava manchas na careca branca, salpicadas de vermelhões cinzentos, muitos deles, lesões perigosas que podem se transformar em câncer caso não cuide de eliminá-las em breve.

“Bom dia seu Manoel da roça. O velho que tomou chuva de pedras no cocuruto. E hoje ficou assim, como agora o vemos. Cheio de pintas tantas na calva salpicada de manchas esquisitas”.

O fato inconteste que em verdade a idade faz traquinagens múltiplas com a gente. E como ficamos diferentes com o sacolejar dos anos!

Rugas, cãs, barrigas proeminentes, sulcos que mais e mais se aprofundam na linha que vai dos lábios ao canto da boca, beiços inexpressivos, cabelos, quando ainda os tempos, frágeis e quebradiços, orelhas que pouco escutam, isso deve ser considerado coisa boa, em certas ocasiões, paladar que confunde doce com salgado, sexo engavetado, mesmo ao sabor das tais pílulas que prometem levantar defunto morto. Mas, quando a velha que se tornou nossa esposa pede que, pelo amor de Deus, o sexo aconteça uma vez apenas, o tal ato fica falho, e não mais responde ao apelo mesmo tendo um capim novo como repasto. Esses fatos notórios e mais tantos outros, que, se ficasse me estendendo neste capítulo que trata das mudanças que a gente experimenta, minha crônica de hoje cedo, onze de setembro, não teria fim.

Foi ontem mesmo que o incidente aconteceu.

Subia pelo elevador, no meio da tarde, era um domingo quente, em direção ao apartamento do terceiro andar, onde mora uma parte de mim mesmo. Ali habitam meu neto Theo, sua mãe, minha filhota linda, a Bárbara jornalista que escreve como o pai, e meu genro que entrou para a família pela porta da frente, e aqui montou banca, esvaziando minha geladeira das guloseimas que antes eram minhas.

A tal casinha que espicha e encolhe, não descansa da sua nobre arte, naquele sobe e desce sem remuneração condizente, mora um espelho dedo duro. Poderia dizer sobre ele: bem que poderia fazer parte dos alcaguetes, os indivíduos inescrupulosos da geração dos delatores da operação lava-jato.

Olhando-me de frente daquela superfície espelhada, que não mente sobre nossa aparência, percebi, já há bem tempo, que sinais inequívocos de longevidade mostravam-se por todas as partes.

Cabelos brancos assanhavam-se-me nas têmporas. Cãs, muitas delas, era tantas que os fios castanhos não existiam mais. A pele, antes sedosa como a casca do pêssego maduro, sem os indesejáveis bichos, se mostrava macilenta e desbotada. O nariz, via de sempre entupido, era uma coisa pontuda que nada lembrava o que era antes. Os olhos, sem viço, ladeados por olheiras profundas e roxas, nada enxergavam senão o óbvio. E olha que ambos foram operados de cataratas, melhor cachoeira, na linguagem poética que tanto adoro.

Mas, mesmo considerando-se tantos e tantos impropérios, depois de tamanhos mistérios que a vida me ensinou existirem, ao me constatar aos sessenta e sete anos completos no mês de dezembro a idade encomprida para oito deles, escrevendo com a fecundidade com que o talento que se apossou de mim na mesma noite quando meu pai faleceu, conto nos dedos dezessete deles, correndo distâncias próprias aos carros, há meses corridos o trajeto foi de cinquenta quilômetros, e ainda posso ir mais longe ainda, nadando como uma lontra faminta, pedalando sem as rodinhas que foram retiradas da minha bicicletinha que o passado levou, me fazendo entender em quase seis idiomas, logo serei capaz de falar e escrever bem mais, tomara, ao confabular com o mesmo espelho do elevador, para ele confidenciei: sinto-me melhor agora que há quarenta anos atrás. Quiçá seja mais feliz agora que dantes era. E mais comunicativo. Menos arredio. Mais afável e simpático. Mais sábio e escorreito. Mais sensível, inclusive. Sou tanto mais, que, olhando em direção ao espelho, não dei conta de que estou em verdade velho.

Mas, embora os anos tenham visto de permanência em mim, a tinta que os anos impingiram-me em meus parcos cabelos, em absoluto não me causam desenganos. Ao revés…

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