Onde já se viu engolir sapo e cuspir aquelas vespas furibundas, que só de ferrão têm um palmo, além de injetar um veneno perigoso, muito pior que o da sogra do Zé Mané.
Quem ainda não teve a desfaçatez de entrar num ônibus lotado, com gente por todo lado, espremido como sardinha em lata, e perceber, num descuido, alguém, sorrateiramente, enfiar a mão boba em seu bolso dali tirando além da carteira recheada de engodos o tal celular que vale um milhão?
Todas essas situações acima narradas fazem parte uníssonas e desatinadas dos nossos sonhos descoloridos de prazer do mundo atual.
Todos temos de aprender a engolir sapo com barbatana e tudo mais. Podem questionar que sapo não é guarda-chuva, não tem barbatana nem nada, o pobre batráquio só dispõe de cara de mal, embora seja bonzinho para a perereca do vizinho, que nunca nadou em nosso quintal.
Como médico do serviço público, com mais de quarenta anos nos costados largos, atendendo naqueles espaços exíguos, sem lenço ou documento, sobre um sol de quase dezembro, ainda não aprendi a engolir batráquio ou cabo de guarda chuva. Considerado por mim o pai dos esquecidos.
Podem dizer, na contramão dos esculápios desassistidos pela sorte, que eles ali estão não por que querem. E sim por excesso de lotação de médicos novatos, que enxovalham a honra dos nobres compêndios da medicina, desentendidos que são na nobre arte de encaminhar hemorróida ao urologista e caxumba ao dermatologista.
Eu tenho quase trinta anos de serviço público na área de clínica médica, num posto humilde que recebeu o nome em honra e glória do Velho Guerreiro. Aquele que sempre vociferava: “Terezinhaaaaa”!
E um pouco menos em outro, que recebe o nome pomposo de Ambulatório Médico de Especialidades (AME).
Entre um e outro me desdobro, enquanto os sinos não dobram por mim.
Quantas e quantas pessoas boas ali atendi… Quantas e quantas receitas ali desferi… Quantas e quantas vezes ali compareci… Quantas e quantas vezes eu vi: gente desassistida pela sorte, gente que usa remédios tarja preta, pacientes impacientes dada à sua situação de penúria frente à vida ingrata, que privilegia os ricos em detrimento dos mais pobres, pessoinhas gentis, ao lado de outras nem tanto.
Na outra face da moeda de duas caras atendo a minha especialidade de Urologia.
Ela é quem mais me dá sudorese na alma.
Nunca seria demais recordar que a especialidade que trata das enfermidades do aparelho urinário, da parte íntima dos machos, das inadequações sexuais do varão, se trata de uma área atrelada a muitas dificuldades, tanto no diagnóstico quanto na solução dos problemas pertinentes a ela.
A Urologia demanda muito estudo e dedicação. Hoje quase não se fazem cirurgias a corpo aberto. Poder-se-ia dizer adeus ao velho bisturi. A laparoscopia, os robôs, as intervenções intracanaliculares, via laser ou não, o tratamento do cálculo renal pelas ondas de choque (litotripsia extracorpórea), e outras maravilhas mais, tomaram-nos a sanha armada do bisturi de lâmina afiada, como a língua de certas pessoas.
Já tive incontáveis mazelas durante o atendimento via SUS. Não por culpa única do médico, e sim de um sistema falido, como em breve vai estar o país.
Hoje mesmo, depois de assentar-me à cadeira, com o sol pelas costas, um calor dos infernos, quase à hora do almoço, naquele ambulatório metido da zona norte da cidade, para onde sempre rumo pelas rodas da lotação amistosa dirigida pela motorista amigo de nome Luis, sem acento, notável condutor educado, que agora não mais tem a companhia da trocadora, ele desempenha duas ou mais funções, fui vítima de uma grosseria sem igual.
Um sujeito mal educado, desberçado, o segundo a ser atendido numa lista de não sei quantos indivíduos extremamente corteses, era um exceção à regra, depois de explicar-lhe, educadamente e pacienciosamente, que deveria fazer, antes do toque retal o tal exame de PSA, um indicador confiável da saúde da próstata, e explicar-lhe que depois de o exame feito deveria retornar com o resultado em mãos, o tal saiu da sala aos coices e xingatórios.
O safado do deseducado jogou-me o papel, por sorte era apenas o papel, na minha cara lívida de estupor.
Vociferando, como Lúcifer na ante-sala do inferno, em altos brados, que o pobre médico, que por acaso era eu, deveria ter mais educação, informar melhor a sua situação, deixou o ambiente pondo em pânico os demais pacientes. Mais pacientes e educados.
Só não saí no tapa e pontapés com o fulano de tal por falta de tempo. Outros pacientes estavam à espera da minha receita salvadora. Ou não.
Deixei o AME com a sensação do ame-o ou deixe-o. Bem que gostaria de deixá-lo.
Nessa altura da minha caminhada pelas veredas escuras do serviço público, quase na véspera de me aposentar, não por incapacidade, ou cansaço propriamente dito, tenho de reaprender a engolir sapo e cuspir marimbondo, com a casca e tudo.
Tenho dito e reedito…