Até hoje não sei, embora saiba que cada vez mais nada sei, talvez me iluda em pensar que os conhecimentos adquiridos nestes sessenta e seis anos bem vividos, tantos e tantos que são, foram suficientes para descer um degrau da ignorância, quem sabe dois?, ou mais de quantos anos eu colecionei na trajetória de vida que um dia tracei?
Os anos de vida, sempre pensando à frente, um dia minha querida filha afirmou, numa orelha de livro, cujo nome é Risos e Prantos, entre outras frases elogiosas: “Meu pai é um homem à frente do seu tempo”. Embora me situe à frente nunca ousei me desvencilhar do passado. Sem querer querendo a ele volto. Apesar de muitos considerarem o presente e o futuro essenciais, pra mim ambos não existiriam sem o mugido do passado, daqueles verdes anos que não voltam mais.
Daqui de cima, já afirmei antes, olhando pela janela do sétimo andar de onde exercito minha dupla militância, me deslocando entre o médico e o escritor, cada vez mais fecundo, observo o passado. Naquela Rua Costa Pereira, daquela casa de janelas marrons, de paredes tintas de uma tinta com sabor e cor da saudade, é por onde sempre passo, nos fins de tarde, para ver não apenas o hálito nostálgico de inebriante sabor, da casa onde moraram meus pais. Ali ainda vive uma menina senhora, que, com seus mais de cinquenta anos ainda a considero menina.
Ela tem olhos verdes da cor das ondas verdes do mar, que por vezes se mostram azuis.
Rosinha já passou por muitas provações. E como ela foi amada por meus pais, seus tios que a consideram mais que sobrinha, filha de verdade, pura verdade, inquestionável questão que não se questiona jamais.
Ela venceu um câncer de mama. Com coragem e galhardia. Com simpatia e descrença de uma mente enferma, enfermidade que vem se arrastando desde os anos bons de antigamente, lá estou eu falando de novo no passado, essa tatuagem que não desgruda de mim, como não se desgarra a saudade dos meus pais.
Rosinha é o elo perdido que serve de ponte entre o passado e o presente. Rosinha é o anjo imperecível que nem a doença maligna consegue meter a mão. Rosinha é tudo de bom que meus pais deixaram, além da família pouco numerosa que hoje me abraça. Sem muito aperto do abraço que estrangula. A ela digo: “Rosinha, fique tranquiila, continue essa menina enfiada em meio à idade madura que a vida lhe colocou sobre os ombros vergados por uma postura deficiente. Fique certa Rosinha – anjos não morrem. Vão para o céu junto ao senhor dos anjos, que se chama Jesus”.
Foi junto à menina mulher Rosinha que fiz uma curta viagem no dia de hoje.
Foi uma promessa cumprida que a ela fiz, desde tempos anchos, que ficaram pra trás.
Quando passava pela casa da Rosinha ela sempre me pedia, quase uma súplica: “me leva a Perdões”!
Perdões, aqui pertinho da minha querida Lavras é a cidade onde nasceu nossa mãe Rute. Nome bíblico que meus avós nela batizaram. Não sei por influência de quem ou de qual grande mulher, como ela foi. E de tantas pessoas maravilhosas que ali vivem, convivendo entre aqueles casarões bem conservados pelo tempo, bem tratados por moradores que prezam o colorido do passado, qual seria a cor do passado? Creio que seja da mesma cor da saudade.
Chegamos à vizinha Perdões antes das dez da manhã. Uma manhã nublada de um domingo modorrento, quente, com sintomas de chuvas por caírem na parte da tarde, talvez nos braços da noite alta.
A primeira morada que a Rosinha queria visitar era a casa da Terezinha do Geninho, hoje habitada pelo Paulinho Cueca (apelido que não sei por qual razão), por sua esposa e seu filho hoje com treze anos, e, nesse dia da visita, ali estava como guardiã da mãe e filha amantíssima, nomeada de Eliane, que mora perto de ali. E uma ajudante que vela pela Terezinha do Geninho hoje portadora de doença de Alzheimer em estado avançado. A mesma doença que levou meu pai em seus braços fatais.
Deixei a Rosinha entregue aos seus devaneios. Ela ficou no cômodo de cima.
Já eu, e a adorável Eliane, fomos desbravar o porão da residência antiga, da cidade antiga e bem conservada de Perdoes.
O porão da casa da dona Terezinha do tio Geninho é um labirinto onde se escuta os uivos líricos de um passado redivivo.
São quartos bem conservados. Banheiros como os dos velhos tempos. Salas com móveis antigos, um oriundo do sítio da Cachoeira, rocinha que frequentava nos meus idos anos de menino. Aquela fazendola linda, das tias Mariana, Leonor, do tio Júlio, pai do Jarbas e da Jalva, marido da ainda viva dona Jovita, onde aprendi a chupar jabuticabas sem cair do pé, a pescar lambaris de rabos vermelhos, a me esquentar, nos dias frios, no rabo do fogão a lenha, a não me queixar de tomar banho na enorme bacia esmaltada, de comer naquela mesona enorme, aquela carne de porco guardada na lata de banha, a saborear, com gosto, os quitutes que as tias queridas faziam, com muito amor.
Depois de lépidos minutos enfiados naquele porão antigo, depois de ler uma crônica a minha prima Eliane da tia Terezinha, ex professora agora aposentada, deixamos, Rosinha e eu, não sem antes fazer uma visitinha rápida a outra parenta, na casa cheia de filhos, netos, bis, a saudável matriarca da família Alvarenga, do mesmo sobrenome de minha mãe, aos seus noventa anos de existência fecunda, dona Zaíra, deixamos o porão de Perdões, e toda a linda Perdões, entregues aos porões no meu passado…