Antessala da agonia

Quantas e tamanhas vezes assoprou dentro de mim uma raiva intensa.

Hoje mesmo, ao voltar a casa, quase na hora do almoço, depois de uma andança frenética pelas ruas, na intenção de ajuntar alguns trocados com a finalidade de tornar viável a edição de mais um livro, o de número dezenove, tendo como título: “Leia com meus olhos”, deparei-me com uma senhorinha deitada, à sombra de quase meio dia, fazia frio, enrolada a um cobertor surrado, dormindo um soninho o qual comparo aquele dos meus netinhos dormindo.

Noutras vezes passou-me a mesma ira. Ou “reiva”. Como costumam dizer os personagens da novela o Pantanal.

Que eu me lembre, embora fatos passados estejam mais presentes, coisas que acontecem aos idosos, a raiva me subiu ao alto da minha calvície, quando me deparei com um passarozinho triste, que, depois de tentar seu primeiro voo esborrachou-se ao chão.

Não tive como dar-lhe um funeral decente. Singelamente lancei-o pela janela, deste meu sétimo andar, onde escrevo e exerço a minha profissão, na tentativa vã de vê-lo de novo avoar. Com enorme angústia, misto de tristeza e angrisia, palavrinha nova, mais um neologismo de minha autoria, percebi aquela avezinha filhote, cair, devagarinho, rumo ao asfalto duro, sem sequer implorar, a um Ícaro sequer, que a dotasse de asas de verdade, não aquelas que o mitológico senhor das asas de cera, no mesmo solo se esboroou.

As demais vezes que a tal raiva se apoderou de minha pessoinha não merecem menção.

Pois, quando a gente atinge certa idade, deixamos a raiva de lado. Depois de contarmos até mais de um milhão.

Na dada de hoje, quatro de julho, na intenção de me submeter a uma internação na Santa Casa, infelizmente bastante modificada, o prédio novo inspira novidade, sinto saudade daquele prédio antigo, onde fui operado de fimose pelo saudoso Doutor Silvio Menicucci.

Ali imperava a cordialidade fraterna. Poucos esculápios militavam no velho nosocômio.

A maioria já foi chamada a exercer a medicina no céu dos anjos e querubins.

Por volta da volta das dez e meia, fui ter àquela casa, onde saúde e a boa vontade deveriam ser prioridades. E a atenção aos pacientes deveriam ser o prumo a ser atingido.

Depois de ser informado, pela mocinha do balcão de número quatro, que deveria pegar uma senha, para ser atendido nas minhas reivindicações, depois de hora e meia, de espera, não sem antes tentar explicar, docemente, quem eu era, a mesma me disse, de soslaio, que não havia prioridade no atendimento. E que eu, médico que passou metade da minha vida profissional, dando o melhor que podia, dentro das minhas impossibilidades, não deveria ter regalias.

Foi preciso um dedal enorme, melhor dizendo uma caixa d’água de cinco mil litros, entornando pelas bordas, para controlar a raiva que aumentava dentro do meu eu.

Enfim chegou a minha vez. Voltei ao balcão em questão. A mesma mocinha, de óculos, grossas lentes de grau, depois de examinar a papelada, exames, documentos, guia da Unimed autorizada, a receita e o pedido do meu médico operador, um esculápio novinho, de minha total e irrestrita confiança, ela autorizou a minha internação.

Foi com certo alivio que daquele lugar bastante modificado, desde quando comecei o exercício da medicina, naqueles longínquos um mil novecentos e setenta e sete, quando aqui apeei, vindo das terras de Espanha,  senti-me como aquele passarozinho, sem saber avoar, que esborrachou-se no asfalto negro e duro, sem que nada pudesse fazer para amenizar-lhe a dor.

Naquela antessala da agonia senti-me como um náufrago de uma nau sem rumo. Como um sapato velho, gasto e furado na sola. Sem direito a meia sola ou remendão.

Ai que saudades me cavoucam o âmago. Daqueles verdes anos quando médicos não cobravam consultas de colegas. Quando a palavra dada tinha maior valia que mais de mil notas promissórias.

Quando ser velho não era palavrão.

Perdoe-me se abusei da minha ira. Não foi um momento impensado. Simplesmente senti-me como uma carta fora do baralho. Um az de espada. Ou até mesmo um coringa. Do qual lançam mão quando não se tem outra opção.

 

 

Deixe uma resposta