O que não se faz por uma boa amizade. Daquelas de verdade. Nos bons e piores momentos.
A gente não carece de ser rodeado de pessoas que se dizem amigas. Pra mim bastam alguns apenas. Dou maior valor aquele velho amigo de infância. Que com a gente disputava aquela menina de cachinhos doirados, traseirinho arrebitado, narizinho empinado, cinturinha que mal se via, de tão fininha, perninhas esguias mais ou menos ao meu gosto. Não grossa demais, nem fininha ao excesso, boquinha e face tão rubras principalmente quando a gente olhava demais pra ela. E ele, e eu, à hora do recreio ficávamos de queixos caídos olhando de viés pra onde ela estaria. E elazinha mal nos via. E olhava, de olhos gulosos, em outra direção. Pobre da gente.
Fomos ambos trocados por um lourinho riquinho, cdf, que sempre vinha à escola de motorista engravatado. Num carrão tipo limusine. Cujo preço deveria ser mais alto do que o Empire State Building. Ou as Torres Gêmeas uma sobre a outra. Que num onze de setembro foi implodida por dois impactos de aviões.
Já tive amigos humanos. Principalmente na tenrice da minha infância ou juventude não transviada.
Entre eles cito: Januário, Gibinha, Tampinha, Gilson, mais parecido ao Vanderlei Cardoso cantor que ele mesmo. E outros mais. Foram poucos. Pena que três deles já fizeram as malas numa viagem sem volta. Não partiram de trem ou avião. Muito menos em outra condução. Foram avoando rumo ao céu. Penso que nossa amizade ainda continua. Em outra dimensão.
Já tive amigos cães. Foram tantos que nem meus dedos todos, somados em mais de trinta mãos, dariam conta de recontá-los.
Não irei citar seus nomes, pois muitos deles, no presente momento, fazem companhia fiel aos cachorros que pastoreiam ovelhas desgarradas no céu.
Já hoje, moram na minha roça, na minha casa beira represa do Funil, a alguns metros apenas de onde moram o meu fiel escudeiro Binho, filho do Roberto e da dona Lúcia, irmão da menina seriema. Da Lucilene, mãe do Cauã, e do Carlinhos. Peão que dá conta de amansar cavalo bravio, e ainda dirige máquinas da Camargo Correia. Gente cujo único defeito é honestidade e capacidade de trabalho ao exagero. E meus novos amiguinhos, saltitantes filhotinhos. Um foi por mim batizado de Clo. O segundo, pretinho como jabuticaba madurinha, foi chamado de Robson (o nome de verdade do Binho).
Aqueles cãezinhos são de fato amigos fiéis e devotados. O Clo, filhote de fila brasileiro, de olhos esverdeados e pelagem rajada, mais jovenzinho que o Robson, não se desgruda de mim um só momento. É como se fosse uma sombra que me acompanha mesmo sem sol. Já o Robson, negrinho, e de rabinho cotó, é filho do cão pastor que me foi dado de presente pelo Edinho. Peão que não só amansa cavalo. E tem alguns mangalargas em seu pequeno haras no município de Ribeirão Vermelho. Nas proximidades da fazendinha do Padre Santo Israel. Que hoje quase nada falta para ser beatificado. E só incluir seu nome ao Papa. Um dia irão reconhecer-lhe o valor.
Neste sábado de setembro, dia que começou acinzentado, mas logo o sol clareou, fomos a roça bem cedo. Na minha pratinha valente fomos em dois. Minha companheira de todas as horas e eu.
Em lá chegando já estava o Robson, Binho, trabalhando. A nossa intenção era de fazer covas e plantar mudas de citrus. Já estavam de prontidão tanto o esterco ensacado. De véspera. E adubo. O conteúdo dos saquinhos de veneno contra formigas cortadeiras seria semeado como proteção para as fruteiras jovenzinhas como meus dois cãezinhos.
Deixamos o Binho e minha esposa incumbidos de fazer as covas e depois ir plantando as mudas. E partimos, eu, e meus dois amiguinhos cãezinhos à cata de um pedreiro.
Foi-nos indicados um dos filhos do Sô Mané. Um que mora num sítio mais ou menos nas vizinhanças. Não era tão perto assim.
Começamos a não tão curta viagem em marcha mais ou menos lenta.
Robson, espoletinha, ia à frente. Clo, como minha sombra, ia no meu rastro.
Passamos por aquela estradinha curta. Menos de um quilômetro de lonjura da Casa Amarelazul. Cenário do meu romance Madest.
A seguir subimos um morro topetudo. Por onde desce o caminhão leiteiro para recolher o leite de dois dias de produção.
Passamos, nós três, por uma estradinha levemente planinha, na intenção de chegar à morada do Sô Mané. Lá embaixo nos admirava molhada a represa do Funil.
Era uma distância considerável. Pra mim, acostumado a maratonas, tanto na profissão quanto nas corridas loucas que sempre fiz. E ainda vou continuar. Até quando Deus me convocar a morar junto aos meus pais. Mas, para aqueles filhotinhos jovenzinhos, que quase nunca saíam do seu canil reformado, seria uma prova de por suas linguinhas de fora.
E, enquanto eu trotava, Clo e Robson, com suas quatro patinhas espertas olhavam o velho correndo lentamente atrás.
Foi uma empreitada insana. Ainda bem que não só ventava frio como o céu acinzentava-se cada vez mais.
Quase duas horas de correria. Subíamos e descíamos morros. Caminhávamos na planura.
Clo e Robson não sentiam absolutamente cansaço. Eu fingia que não.
Quase à hora do almoço, depois de fazer uma visitinha ao amigo Geraldo da dona Nega, e me alegrar por tê-lo encontrado bem melhor, voltamos à minha roça. Antes passando pelas ruínas da escolinha abandonada. Triste cena melancólica.
Lá do alto da porteira de madeira nobre, feita em jacarandá, pelo pai do Robson Binho, avistamos finalmente o Solar Paulo da Rosa.
Descemos o morro agudo em quinta marcha. Robson pretinho, e Clo ao meu lado, afinal chegamos ao nosso destino.
Meus dois amiguinhos foram de novo convidados a entrar no seu canil. E eu, o amigo, de duas patas e uma cabeça pensante, acabei por voltar a minha Lavras. Já com saudades do Clo e do Robson. Amigos leais e companheiros de verdade.