Há pessoas que partem. Já outras se perenizam por suas boas lembranças

Da mesma maneira que existem pessoas que deixam, como legado, apenas boas ações.

Já que bens, patrimônio, gordos saldos bancários, um dia se vão. Os ex endinheirados, não só em nossa cidade, como país afora, muitos perderam tudo. E deixaram como herança aos seus descendentes apenas dívidas e contas a saldar.

Como a vida me tem ensinado, já que sou todo ouvidos a novos aprendizados, a fortuna quase sempre muda de mãos. Os que antes tudo possuíam, numa fase tresloucada de suas vidas, por motivos distintos. Qual seja a falta de competência para gerir os negócios de familia. Ou por falta de juízo. Entregues à jogatina ou outro vício maior. Terminam por jogar no lixo tudo aquilo que os pais conquistaram. Com muito suor e lágrimas derramadas. Acordando e indo pro trabalho tão cedo. Bem antes de o sol se levantar. A lua se deitar. No seu travesseiro feito de nuvens clarinhas. Como penas de ganso bem limpinhas.

Gostaria de deixar como legado aos que me sucederem, nesta vida efêmera como a florada dos ipês, não somas polpudas em dinheiro. Assim como prédios cheinhos de apartamentos luxuosos. Mansões a beira mar. Ou, até mesmo uma piscina, tal e qual a do Tio Patinhas, onde ele nadava em cédulas, uma verdadeira fortuna, onde ele se deliciava a nadar.

Gostaria sim, de deixar aos meus três netinhos, já que em suas veinhas fininhas escorre o mesmo tipo sanguíneo, de genes semelhantes aos meus; uma instrução refinada, uma inteligência a ser posta a fim de serem cada vez melhores. Quem saberia dizer, se, por acaso, um daqueles meninozinhos sempre alegres, herdasse do avô a arte da escrita? Pra mim, neste quase ocaso da minha existência, seria a maior felicidade, o melhor presente, bem melhor do que aquela bicicletinha de rodinhas amarelas, que meu papai Noel me presenteou.

Como pessoas póstumas que deixaram como legado apenas bem aventuranças. Um sorriso que nos tenha enfeitado um dia de infelicidade que porventura tenhamos passado. Um abraço que tanto nos fazia falta num dia de solidão. Um gesto amável mostrado há anos passados. Do qual jamais nos esqueceremos. Um aperto de mão apertado. Há muito esperado. Um carinho, um consolo, num momento de aflição. Uma moedinha de alguns tostões que alguém tenha depositado em nossa mão. Quando precisávamos de ajuda para tomar um cafezinho. Num dia frio de inverno.

Entre tantos amigos, aparentados, que deixaram após sua partida a algum lugar pra mim desconhecido, que seja o céu azul que hoje amanheceu, ou numa noite escura que as nuvens acinzentaram transformando o azul do firmamento num breu, cito, sem ordem de importância, primeiramente meus pais.

Continuando a engordar esta mesma lista, interminável, longuíssima, posso enumerar parentes, gente boa, amigos caros, pessoas que me ajudaram com sua gentiliza. Não restam dúvidas que gentileza atrai gentileza. Boas ações exigem como objeto de troca, ida e volta, melhores ainda, como me lembro, olhos lacrimejantes de nostalgia, palavrinha entendida como doída, que não rima com saudade, mas enseja o mesmo sentimento, cito, um senhor, agora ausente do meu abraço, um homem caridoso, que morava num barraco feito cadinho a cadinho, tijolo a tijolinho. Por baixo, quase ao rés do chão era a sua oficina. Numa avenida movimentada que nos conduz ao centro da cidade. Antes do asilo onde ele se despediu da gente. Era conhecido por Moreira.

Além de meu amigo ele se prestava a pau pra toda obra. Na minha rocinha, em tempos idos, ele construiu um barracão onde hoje o arrendador das minhas terras usa como garagem pra sua caminhonete branca. Quase sempre embarreada quando a chuva cai em saraivadas.

Mestre Moreira era especialista em fazer telhados de postos de combustíveis que vendiam seus produtos. Defronte a sua casinha tosca foi ele mesmo quem cobriu o posto do amigo Fio.

No prédio do oftalmologista, de sobrenome Metzger, ele serviu como mestre de obras. Fazendo andaimes de tábuas selecionadas por ele mesmo.

Um dia, quando ele ainda se equilibrava na sua magrela, Moreira era puro cerne da mesma árvore que usava seu primeiro nome, em um de nossos encontros, não me lembro a data precisa, ele me disse: “doutor Paulo. Se você entrar numa briga me chama. De onde eu estiver irei em seu socorro. Briga sua é minha também.”

Ainda me lembro de quando fui fazer-lhe uma visita. Naquela casa não concluída, os tijolos eram vistos sem reboco, um velho portão de ferro sem cadeado, toscamente amarrado com arame enferrujado, um cãozinho latidor a todos permitia ou não adentrar naquela casinha tosca, encontrei o amigo Moreira a cuidar de sua esposa. Ela, acamada, sem qualquer filho, ou filha, a ajudá-lo, trocava a roupa de cama de onde exalava um forte odor de urina.

E o velho Moreira não reclamava. E, naqueles tempos, há anos passados, quando a sua esposa faleceu, meu amigo, de tantas idas e voltas da minha rocinha, quase sempre sem cobrar o trabalho executado, eu lhe dava uma gorjeta irrisória. E ele, com sua voz possante, como lhe eram os braços e as pernas, me agradecia prometendo voltar a me servir quando dele precisasse.

Um tempo antes da sua viagem sem volta ao reino dos céus, como ele vivia a sós, tentei levá-lo ao asilo das irmãs, pertinho de sua morada. O seu quartinho já havia sido reservado de véspera.

Era uma habitação bem melhor onde meu amigo morava.

E ele não se interessou em se mudar. Precisei fazer meia volta e novamente o deixei no mesmo barraco de sempre.

Tempos depois fui informado, por uma filha, que seu pai havia partido.

Fiquei, naquela hora triste, com meu coração partido.

Já o descrevi em outra crônica como o Rei da Gambiarra.

Como disse no título, deste texto de hoje, domingo, dezoito de setembro: “há pessoas que partem. Já outras se perenizam por suas boas lembranças”.

Moreira se foi. Mas ainda o tenho como verdadeiro amigo. Um dia nos encontraremos de novo. Num lugar melhor, espero. Que aquele seu barraco na mesma avenida da nossa Lavras. Que nos conduz ao centro. Para quem vem da rodovia que tanto nos dirige para Belo Horizonte ou São Paulo.

 

 

 

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