A primeira e a última vez do Zé Gotinha

Quem ainda não experimentou aquela sensação de acordar mais de algumas vezes noite adentro. Ir ao vaso sanitário. Acender a luz na escuridão dominante. Fazer um esforço danado para expelir a urina acumulada na bexiga. E a tal da desgraçada urina sair aos pingos. Gota a gota. Antevendo a hora ingrata de ver a urina retida. Depois de esvaziar o urinol. Que transborda debaixo da cama. Uma urina fétida como carniça evitada até pelos urubus perfuma o quarto de dormir, bem pouquinho, como acontece na velhice.  E ter de ir com urgência ao pronto socorro mais próximo. Na intenção de encontrar, naquela madrugada friorenta, uma alma boa que consiga aliviar-lhe os queixumes. Mais uma vez tenta, retenta, urinar e nada sai do seu canal final, chamado uretra. E o médico plantonista, neófito no assunto, um reles residente que nunca havia visto tal enfermidade, procura por um colega mais experiente. Ai que saudade do urologista. Especialista que não se encontra presente. Pois ele, e sua equipe, não se presta a dar plantões. E sim acorda ao nascer do sol para operar próstata. Cirurgia complexa. Que pode se complicar no meio da noite. E o pobre médico do dedo considerado invasivo, é mais uma vez intimado a deixar o sono de lado. E lá se vai ele de volta ao hospital. Para tentar desentupir a tal sonda. Já que a bexiga se encheu de coágulos. Grandes demais para serem expelidos por aquele pertuito fininho. Já que a sonda deixada na uretra era de calibre insuficiente para dar passagem ao sangue coagulado. E o pobre especialista em rins, bexiga, e tem pela próstata verdadeira adoração, os órgãos genitais do macho entende de montão, tem de reoperar o pobre paciente, aflito e dolorido, não só pela bexiga cheinha., Mais ainda que a dor do parto, reabre a antiga incisão, da bexiga suturada retira coágulos de montão, e volta a suturar, ponto a ponto, e fecha novamente a incisão.

E a mesma rotina volta a se repetir vida afora. Até que o nosso médico urologista, hábil e competente cirurgião, chega a certa idade. Uns mais prematuramente. Outros mais tardiamente. Acaba aposentando tanto o bisturi como as chuteiras. Embora, durante a vida inteira tenha sido um perna de pau. E, quando fez um gol o juiz considerou em impedimento. Invalidando o tento. E ainda por cima expulsou o nosso colega. O mesmo que passou quase a vida inteira se dedicando, de corpo e alma, a aliviar a dor dos outros, esquecendo-se do próprio sofrimento.

Não faz tantos anos assim. Creio que apenas vinte.

Fui chamado, noite alta, céu recheado de estrelas, uma luona enorme iluminava o firmamento, nem era o médico de plantão, a atender, num lugar ermo, a um paciente já idoso, de nome Zé, apelidado de Zé Gotinha. Apelido este devido a passar a noite inteira mijando gota a gota. Quase não conseguindo verter a urina. Até que, naquele momento de aflição doida, fui convocado, por um aparentado longe, a ir até a sua rocinha. Pois não havia, naquele postinho de saúde nas proximidades, quem fosse capaz de introduzir uma sonda, mesmo fininha, pela sua uretra entupida.

Em ali apeando, fui de carona num carro de boi, puxado por vacas baldeiras, subimos morros topetudos, descemos por ribanceiras. Até chegar ao local onde Zé Gotinha suava e transpirava em bicas. Encontrei-o entre a cruz e o credo. Com a bexiga quase estourando. Como um balão solto nos ares atingido por um tiro de espingarda.

Não foi fácil o atendimento. Por não ter como pagar a minha ida ao tal lugar ficou no pendura. Ou melhor, depois de passar horas seguidas, de luvas de látex enfiada nas minhas duas mãos, depois de lubrificar o tal canal por onde a sonda iria passar, com vaselina purinha, já que lá não tinha coisa melhor, enfim o bexigoma esvaziou-se como um balão furado. Acabei levando, no mesmo carro de boi, duas dúzias de ovos caipiras, um queijo fresquinho. Um cacho de bananas por madurar. E um muito obrigado doutor. E foi só.

Saiu xixi por todas as bandas. Molhou até a minha cueca. E não tinha outra pra trocar. Recusei a calcinha enorme da mulher do Zé Gotinha. Não iria ficar bem eu, um médico especialista, chegar ao hospital vestindo uma calcinha de mulher. O que iriam dizer de mim? Não sei. Prefiro ignorar.

Atendimento feito. Muito bem executado. Depois do toque, sem retoque, indiquei ao Zé Gotinha que fosse ao meu consultório a fim de fazer os exames pré-operatórios antes de retirar sua próstata hipertrofiada.

Inclusive marcamos a data. Pra mim quando mais cedo melhor. Não sei qual foi a opinião dele.

Na nossa despedida penso ter sido estas as suas palavras: “antes tarde do que nunca”.

Tempos avoaram. E neca de pitibiriba de o Zé Gotinha comparecer à consulta. Meses depois fui informado, por um aparentado longe, que o pobre Zé Gotinha acabou de viajar para o céu.

Levando a mesma sonda enfiada não sua uretra. Ele acabou falecendo de causas ignoradas.

Aquela foi a primeira e última vez que passei os olhos, e a sonda, no pobre Zé Gotinha.

Fica aqui, um alerta em forma de um conselho. Não deixem a sua próstata engordar tanto. Um dia ela vai privá-lo de urinar.  A sonda é um mal necessário. Não contradigam jamais a opinião de um urologista.

Aquele esculápio levou seis longos anos até se diplomar. Mais dois cursando cirurgia geral. E mais três ainda até ser considerado especialista em rins, vias urinárias, e aparelho genital masculino.

 

 

 

 

 

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