Meio médico

Ontem, segurando uma das alças do caixão de minha tia, a caminho do campo santo, onde descansam meus pais, pensei não somente na finitude da vida.

E noutros itens também.

Um primo, de mesmo nome de nosso avô Rodartino Rodarte. Gente da prateleira cima. Outro primo, filho da falecida ia atrás. Do outro lado do carrinho de quatro rodinhas apenas não dava pra ver quem seria. O mesmo primo médico. De outra especialidade que não a minha. Serenamente me confidenciou: “primo P R (o indomável).  Era assim que me chamava.  Está vendo? Estamos levando a nossa querida tia Cida, em sua derradeira viagem, neste carrinho simplesinho. Sem uma lataria prateada. De baixo custo. O qual dispensa motor ou combustível. Passamos a vida inteira colecionando carrões de alto custo. Milionários compram Mercedes prateadas, vindas de terras d´além mar. Ferraris vermelhas velozes como raios. Carrões que valem mais que uma boa amizade. E, na hora de nossa última viagem são carrinhos singelos como este que nos levam à derradeira morada”.

A gente se enche de cabelos brancos. Rugas passarinham-nos face adentro. As pernas antes fortes e poderosas claudicam. Chegamos a certa idade manquitolas e abengalados. E, assim que a idade chega, nuns mais, noutros menos, aparecem as mazelas que. Ou podem nos atirar a um leito de hospital. Irreversivelmente. E um dia, felizmente não sabemos quando. Iremos deixar este mundo maravilhoso. E partirmos rumo ao desconhecido. Uma verdadeira incógnita que nos assombra.

O fato retrato é que a gente nasce. Usando fraldas. Criamos barbas. Antes imberbes. O trabalho nos intima. Muitos ainda se submetem a serem filhos cangurus. Envelhecemos. Voltamos a usar fraldas ainda maiores. Os felizardos vivem saudáveis ultrapassando os cem. Ai quem me dera trilhar este mesmo caminho!

Existem incontáveis profissões. A de escritor. Em nosso país de iletrados e incultos. Viver de livros trata-se de um impropério. Uma aventura de alto risco.

Mas, no meu conceito de não erudito vale a pena o sacrifício. Melhor ainda escrever. E ler.  Que bom que fosse de alto apreço em minha gente brasileira. Aqui fecham livrarias a cada dia.

E abrem-se botecos em cada esquina. Estabelecimentos que, caso a vigilância sanitária ali fizesse uma vistoria bem feita poucos restariam de portas abertas.

De volta ao título “meio médico”. Frase que me confidenciou um colega de fardas no dia de ontem. Um grande, por mim, e por seus pacientes admirado. Caminhando lentamente. Cabisbaixo e pensativo. Ao nos cruzarmos numa esquina notei que algo o molestava.

Fomos alguns metros adiante. Ele iria descer a rua. Até onde morava. Eu iria mais adiante.

Meu irmão Fred, vindo de Belo Horizonte, na intenção de acompanhar o sepultamento de nossa tia, estava na casa onde morava a nossa irmã Rosinha.

Há tempos não nos víamos.

Este mesmo colega com quem me encontrei no dia de ontem mostrava um certo ar de desalento.

Num ponto de nossa curta conversa ele se abriu comigo.

“Paulo. Penso em parar de clinicar. Confesso-me cansado da medicina. Não me apetece ser meio médico”.

Assim que lhe foi oferecido meu novo livro ele não titubeou. Depois de uma dedicatória feita numa jardineira do prédio de nome Francisco Rodarte. Meu tio, enaltecendo-lhe as qualidades de excelente esculápio ele adquiriu meu “Leia com meus olhos”.

O que pra mim quer dizer ser meio médico?

Seria um médico partido ao meio. Um esculápio de quem fora amputado metade do corpo?

Ou um cadeirante de pernas faltosas. Que, valentemente ainda clinica?

Pra mim, que já estou prestes a fazer cinquenta anos de graduado em medicina.

Já que exerço esta profissão espinhosa há quase uma vida inteira. Perdendo mais metade dos meus setenta e dois anos me dedicando integralmente a operar, reoperar, atender consultas e mais consultas. No presente momento elas têm escasseado.

Confesso que os doentes preferem os médicos recém saídos da especialidade. E como as novidades são profusamente procuradas. E de nada vale a experiência adquirida depois de anos e anos na tentativa por vezes inglória de salvar vidas.

E a gente, esculápios de idade avançada, somos sobejamente preteridos. E resta aos novatos a maior fatia do bolo.

E, como urologista não tenho como acompanhar a evolução da minha especialidade. Já que as cirurgias abertas se tornaram peças de museus. E a cirurgia robótica tomou-nos o bisturi com seu fio cortante.

Creio que não prematuramente irei me aposentar. Pois considero que médico não tem este direito. Quem a nós oferece um banco da praça para conferirmo-nos as nossas nádegas ao assento não somos nós. E sim a confiança que o paciente na gente deposita.

Ontem, um grande clínico, que em nossa cidade aportou um ano depois da minha chegada.

Me disse que se sentia fatigado. E que gostaria de parar de exercer sua nobre arte.

O motivo que ouvi de sua boca não era outro senão este: “Paulo. Não desejo nunca ser meio médico”.

E como gostaria de lhe dizer. Naquela hora não me lembrei.

“Doutor Marcelo. Somos de Boa Esperança. Terra de Rubem Alves. Do notável pianista Nelson Freire. Nós dois ainda estamos inteiros. Somos cabeças pensantes. Temos a experiência que os anos nos dotaram. Aprendemos a escutar os reclames de nossos pacientes. Não pedimos exames desnecessariamente. Examinamos a quem nos procura detalhadamente.  E evitamos receitar fármacos nos quais não acreditamos na sua eficácia. Não somos, em absoluto. meio médicos. Não se desanime. A vida é assim. Um dia, quando me aposentar, por completo, meu saudoso pai já dizia: o ócio é o começo do fim. E, creio que meu final ainda está longe de acontecer”.

 

 

 

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